O centro de nossa galáxia é um enorme amendoim brilhante. Dito assim, parece a abertura de uma obra de ficção nonsense. Mas, pasmem, caros leitores, essa é a realidade – ou quase isso. Essa estrutura ‘leguminosa’ da galáxia foi confirmada por dois estudos recentes, que geraram o melhor mapa tridimensional já produzido das zonas centrais da Via Láctea e mostraram que seu bojo, se olhado a partir de determinado ângulo, tem o formato de um amendoim gigante composto por estrelas, gases e poeira – a partir de outros pontos de vista, o conjunto assemelha-se com um ‘x’ ou uma barra.
Apesar de, à primeira vista, parecer um pouco estranho, esse arranjo em si não chega a ser uma novidade, já que muitas outras galáxias apresentam formato semelhante – modelos atuais já previam, inclusive, um formato bem parecido com esse para a Via Láctea. Porém, mais do que apenas comprovar na prática as previsões dos astrônomos, os estudos ajudam a entender mais sobre o passado e o processo de formação da nossa galáxia e a compreender melhor essas estruturas cosmológicas de forma geral.
O centro da Via Láctea, uma das regiões mais importantes e de maior massa da nossa galáxia, é composto por uma enorme nuvem com cerca de 10 bilhões de estrelas e se estende por milhares de anos-luz. Apesar do grande interesse que desperta nos astrônomos, sua observação a partir da Terra não é simples – é complicado obter uma visão clara da região, localizada a cerca de 27 mil anos-luz de distância daqui, devido a densas nuvens de gás e poeira que nublam nossa visão. Por isso, até hoje sua estrutura e origem ainda não são muito bem compreendidas.
Posições e movimentos
Para realizar as duas pesquisas, foram utilizados alguns dos diversos telescópios que compõem o Observatório Europeu do Sul (ESO), localizado no Chile. O primeiro estudo, publicado na última quinta-feira (12/09) e coordenado por um grupo do Instituto Max Planck de Física Extraterrestre, da Alemanha, utilizou o telescópio de rastreio Vista para construir um mapa tridimensional do coração da galáxia. Para isso, os pesquisadores analisaram a radiação infravermelha de um tipo especial de estrelas, as gigantes vermelhas. Ao todo, foram observadas com precisão inédita 22 milhões de estrelas.
Confira um vídeo do ESO com a impressão artística da forma de amendoim assumida pelo núcleo da galáxia a partir de uma perspectiva bem diferente da nossa
A opção por ondas com grande comprimento, como as infravermelhas, deveu-se ao fato de elas conseguirem ultrapassar as nuvens que bloqueiam nossa visão da região. A gigantes vermelhas também não foram escolhidas ao acaso. “Essas estrelas funcionaram como ‘velas padrão’”, afirmou Christopher Wegg, um dos autores do estudo. “Sua luminosidade é essencialmente independente de sua idade e composição, ou seja, todas têm um brilho intrínseco que facilita a determinação de suas distâncias aproximadas e, com isso, a construção do mapa”, explicou.
No segundo estudo, publicado recentemente e liderado pelo chileno Sergio Vásquez, da Pontifícia Universidade Católica do Chile, foram utilizadas imagens obtidas pelo telescópio MPG nos últimos onze anos. A partir da comparação dos pequenos desvios nas trajetórias das estrelas localizadas no centro da galáxia com os dados sobre sua proximidade em relação à Terra (obtidos pela frequência da radiação luminosa recebida por aqui), foi possível determinar as velocidades de mais de 400 estrelas em três dimensões dentro de um campo específico do bojo galáctico, com menor interferência para observação.
Segundo Vásquez, esta é a primeira vez que se obteve um número tão grande de velocidades tridimensionais da região. “As estrelas observadas parecem se mover ao longo dos braços em forma de ‘x’ da estrutura central, sendo levadas em suas órbitas para cima e para baixo, ou seja, para fora do plano da Via Láctea”, explica. “Isso se ajusta com perfeição às previsões de modelos atuais e ao mapeamento com radiação infravermelha.”
Uma memória espacial
Os dois artigos ajudam a entender melhor o que se passou no coração da Via Láctea bilhões e bilhões de anos atrás. Os astrônomos trabalhavam com duas hipóteses: uma afirmava que o bulbo central teria se formado antes da espiral de estrelas ao seu redor, como uma espécie de pequena galáxia elíptica; outra dizia que uma espiral de estrelas primordial teria dado origem a esse centro espesso.
O mapeamento mais detalhado dessa região da galáxia parece fortalecer a segunda possibilidade, segundo Wregg. “A estrutura que observamos não se parece em nada com o que poderia ter sido uma pequena galáxia elíptica, mas é bem semelhante com o que observamos em simulações que partiam de espirais de estrelas”, afirma. “Por esse modelo, as espirais de estrelas teriam formado uma estrutura central bastante instável em forma de barra após alguns bilhões de anos, a qual acabaria se espessando em busca de estabilidade, como observamos agora na Via Láctea.”
Entender mais sobre nossa galáxia é importante para compreender outras estruturas do universo. “Os cientistas adoram estudar o âmago da Via Láctea por sua proximidade com a Terra, o que permite um exame detalhado”, explica Wregg. “Podemos observar estrelas individualmente, calcular suas idades, velocidades, posições e testar modelos teóricos; estudos detalhados como o do Vásquez, por exemplo, só são possíveis na Via Láctea.”
Por fim, Vásquez lembra que ainda há muito a descobrir sobre nossas vizinhanças espaciais. “Para compreender a estrutura da galáxia, precisamos saber, por exemplo, como é o arranjo das estrelas em seu núcleo e como é a interação de forças na região”, avalia. “Para isso, são fundamentais estruturas como o ESO, que permitem investigações de altíssima precisão, e projetos como o do satélite Gaia, que trará informações detalhadas sobre estrelas espalhadas por toda a galáxia.” O Gaia, projeto da Agência Espacial Europeia, realizará um verdadeiro ‘recenseamento espacial’ e deve ser lançado até o fim do ano – quem sabe para aumentar nossa compreensão sobre o cantinho do universo em que vivemos.
Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line