‘Excêntrico’ foi o termo mais adequado que o paleontólogo Juan Carlos Cisneros encontrou para definir uma espécie pré-histórica que viveu na região do pampa gaúcho há cerca de 260 milhões de anos. É que o animal, pertencente ao grupo que deu origem aos mamíferos, foge totalmente aos padrões de seus colegas contemporâneos.
Tiarajudens eccentricus é peculiar primeiramente pelo fato de ser o mais antigo animal já descoberto com uma formação dentária adaptada para a mastigação. A dentição, semelhante à da capivara, permitia à espécie se alimentar de plantas diferentes das consumidas por pareiassauros, répteis herbívoros da mesma época cujo formato dos dentes, semelhante ao da tartaruga, possibilitava apenas o corte de folhas.
A descrição do animal, descoberto pela equipe de Cisneros em março de 2009, está publicada na edição da revista Science que circula nesta sexta-feira (25/3).
Por causa da forma de sua arcada dentária, está claro para os pesquisadores que a espécie era herbívora. É por isso que outra característica chama ainda mais a atenção: embora se alimentasse apenas de plantas, o bicho tinha caninos extremamente longos, conhecidos como dentes de sabre.
Esse tipo de presa é comum em espécies carnívoras, como o famoso tigre-dentes-de-sabre, que viveu entre 3 milhões e 10 mil anos atrás. Cisneros acredita que as estruturas serviam para o animal se defender de predadores ou para atacar machos da mesma espécie em disputa por fêmea ou por território.
“Cervos atuais, como o veado-almiscareiro e o veado-d’água, também têm caninos bem desenvolvidos embora sejam herbívoros”, explica o paleontólogo. “Esses animais, desprovidos de chifres, utilizam as presas para se defender.” O pesquisador ressalta que, apesar da semelhança no comportamento, T. eccentricus não tem qualquer relação de parentesco com os veados.
O animal, aliás, não tem descendentes diretos vivos. A espécie integrava a ordem dos terapsídeos, que na classificação zoológica fica entre os répteis e os mamíferos, mas que hoje está extinta.
De tão excêntrico, o bicho inaugurou também o gênero Tiarajudens, criado em homenagem ao distrito de Tiaraju, no município de São Gabriel (RS), onde o fóssil de um exemplar do animal foi encontrado.
Para classificar o terapsídeo gaúcho, os pesquisadores criaram ainda um novo grupo taxonômico (Anomocephaloidea), no qual foi incluído também o Anomocephalus africanus, animal descoberto na década de 1990 na África do Sul e considerado o parente mais próximo de T. eccentricus.
Segundo Cisneros, A. africanus também era herbívoro, mas seus caninos não se destacavam tanto como os de seu primo sul-americano.
Antes dos dinossauros
Há cerca de 260 milhões de anos, os continentes ainda estavam agrupados em uma única porção de terra conhecida como Pangeia, e o mundo ainda precisava esperar 40 milhões de anos para ver o surgimento do primeiro dinossauro.
Nesse contexto, na região que hoje corresponde ao Rio Grande do Sul, T. eccentricus convivia com pareiassauros, dinocefálios (terapsídeos que se alimentavam de planta ou carne), temnospôndilos (anfíbios carnívoros de morfologia semelhante à do jacaré) e tubarões de água doce.
Acredita-se que T. eccentricus costumava viver próximo a rios e lagos, já que, além de água, precisava de plantas que crescessem nas margens fluviais para sobreviver. Os indivíduos da espécie, entretanto, não formavam grupos. “Animais que têm presas grandes para se defender costumam ser territorialistas e demarcar espaços individuais”, explica Cisneros.
Escavações
A descoberta do fóssil de T. eccentricus no pampa gaúcho não ocorreu por acaso. Tudo começou no fim de 2008, quando Cisneros, que é professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI), fazia seu pós-doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Estudos geológicos em rochas sedimentares da área entre o sudoeste e o sul do estado gaúcho já haviam mostrado que a região tinha potencial para abrigar fósseis do período Permiano (299 a 251 milhões de anos atrás). “Apesar disso, não havia trabalhos de paleontologia no local”, conta o pesquisador.
Da prospecção da área participaram pesquisadores da UFPI, da UFRGS e da Universidade de Witwatersrandde, de Joanesburgo, na África do Sul. No fim do trabalho, Cisneros calcula que um terço do esqueleto de um T. eccentricus foi encontrado.
“Felizmente temos a metade esquerda da cabeça, que basta para saber como é o outro lado.” Entre os demais ossos coletados estão as patas dianteira e traseira esquerdas, além de escápula e clavícula (que ligam ossos dos membros superiores à coluna) e gastrálias (tipo de costelas abdominais, ausentes no ser humano).
A reconstituição do conjunto de ossos permite ao grupo concluir que o animal era quadrúpede. A forma já desenvolvida de ossos como o fêmur e o úmero, por sua vez, revelam que o fóssil é de um exemplar adulto da espécie, que chegava ao tamanho de uma anta.
As próximas etapas do estudo preveem tomografias do crânio, para que se possa compreender melhor a formação dentária, e um estudo mais detalhado da anatomia do animal.
Características como presença de pelos, cor da pele, tipo de gestação e tempo médio de vida de T. eccentricus ainda são desconhecidas. Isso significa que os novos estudos podem revelar que a espécie era ainda mais bizarra do que já se sabe.
Célio Yano
Ciência Hoje On-line/ PR