Uma pitada de veneno

Uma história de intrigas que termina em envenenamento. Por muito tempo se acreditou que assim teria sido a vida de Tycho Brahe, astrônomo dinamarquês renascentista cujas observações levaram Johannes Kepler a desenvolver suas leis sobre os movimentos planetários. Porém, novos dados apresentados por pesquisadores durante o 8º Congresso Mundial de Estudos em Múmias, no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, descarta essa hipótese e sugere que a biografia de Brahe termina de modo bem menos interessante: com um banal problema de bexiga.

Brahe (1546-1601) morreu após onze dias de sofrimento que tiveram início após participar de um banquete real em Praga. Os documentos da época, inclusive cartas de Kepler, que era seu assistente, diziam que o astrônomo teria tido um problema de bexiga. Essa foi a versão oficial por muito tempo até que, em 1901, pesquisadores dinamarqueses exumaram o corpo de Brahe, enterrado na Igreja Týnský, em Praga.

Análises feitas no único fio de cabelo de Brahe, que ainda tinha raiz, mostraram altos níveis de mercúrio, o que levou à disseminação da ideia de que a causa de sua morte teria sido intoxicação por esse metal. A notícia dividiu historiadores e cientistas que diziam que o mercúrio poderia ter origem em medicamentos ingeridos por Brahe ou ser fruto de um envenenamento proposital.

Brahe era uma figura polêmica. Em 1566, teve o nariz arrancado pelo florete de um nobre dinamarquês que o desafiou a um duelo por causa de uma discordância quanto a uma fórmula matemática. Alguns anos depois, em 1599, entrou em confronto com o rei por causa de suas teorias copernicanas sobre o sistema solar e teve que sair da Dinamarca, indo para Praga, onde construiu um dos primeiros observatórios astronômicos da Europa.

Tycho Brahe
Tycho Brahe foi um astrônomo dinamarquês cujas observações levaram Johannes Kepler a desenvolver suas leis sobre os movimentos planetários. (foto: Eduard Ender/ Wikimedia Commons)

Tanta paixão por seus estudos e tamanha personalidade devem ter contribuído para se conjecturar em torno de Brahe uma trama macabra envolvendo Kepler. Depois das análises de mercúrio, surgiu entre alguns historiadores a ideia de que Kepler teria envenenado Brahe com o metal para roubar seus cálculos e abrir caminho para seus próprios estudos.

A hipótese veio por água abaixo com novas análises feitas no corpo do astrônomo, exumado pela segunda vez em 2010. Cientistas da universidade de Copenhague fizeram novas medições de mercúrio, dessa vez na barba de Brahe, que se conserva presa a um pedaço de pele mumificada, e também em seus ossos e restos de vestimentas.

Tycho era poeta, médico, astrônomo e envolvido com alquimia, logo era esperado que ele tivesse algum contato com mercúrio, que na época era usado para tudo

Os cientistas encontraram na barba de Brahe níveis de mercúrio bem inferiores aos da pesquisa anterior, entre 2 e 16 microgramas em cada fio – abaixo do limite de 200 microgramas considerado nocivo para saúde. Além disso, eles constataram que Brahe não teve nenhum contato com o metal nos seus últimos dias de vida nem nos 15 anos que os precederam.

“Tycho era um verdadeiro homem renascentista, era poeta, médico, astrônomo e envolvido com alquimia, logo era esperado que ele tivesse algum contato com mercúrio, que na época era usado para tudo”, diz o antropólogo forense Niels Lynnerup. “Mas mostramos que, com certeza, ele não foi envenenado com mercúrio nem morreu intoxicado por essa substância.”

Medições feitas nos ossos do astrônomo também revelaram pouca exposição ao mercúrio. Mas suas vestimentas estavam encharcadas com o metal. Lynnerup diz que era comum usar mercúrio para embalsamar corpos e que provavelmente as análises anteriores foram contaminadas por esse mercúrio.

Morte em aberto

A descoberta não descarta envenenamento por outras substâncias que poderiam ter se deteriorado nem pode explicar a causa da morte de Tycho Brahe. Mas, diante das evidências históricas, Lynnerup acredita que o mais provável é que o astrônomo tenha mesmo falecido em decorrência de problemas na bexiga como registrado por seus amigos da época. 

O mais provável é que o astrônomo tenha mesmo falecido em decorrência de problemas na bexiga como registrado por seus amigos da época

“Não podemos afirmar a causa da morte, mas trabalhamos com a hipótese de próstata aumentada, que poderia causar os sintomas relatados em documentos da época, como dificuldade de urinar e dor”, diz o pesquisador.

Mas até para essa explicação existe outra versão. Segundo cartas de Kepler, Brahe teria tido uma infecção da bexiga por ter se recusado, mesmo apertado, a ir ao banheiro durante todo o banquete ao qual compareceu em Praga pouco antes de morrer. Segundo o documento, Brahe não deixou a mesa para manter as regras de etiqueta e acabou tendo a bexiga estourada. Qual é a versão correta? Talvez nunca saibamos.

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Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line