Uma (possível) nova revolução

Parece bom demais para ser verdade. Um grupo de pesquisadores liderados por cientistas do Centro Riken de Biologia do Desenvolvimento, de Kobe, no Japão, desenvolveu uma nova técnica muito mais simples e eficiente para obtenção de células-tronco pluripotentes (capazes de se transformar em quase qualquer outra célula do organismo) a partir de células adultas. Em vez de complicados procedimentos de manipulação genética, a proposta da nova metodologia testada em camundongos se baseia na simples exposição das células adultas a situações ambientais estressantes – em especial sua imersão em soluções com pH baixo. Se puder ser reproduzido em humanos, o procedimento pode revolucionar a incipiente área de terapias com células-tronco.  

Em vez de complicados procedimentos de manipulação genética, nova metodologia se baseia na exposição das células adultas a situações estressantes, em especial sua imersão em soluções com pH baixo

Chamado de ‘aquisição de pluripotência desencadeada por estímulos’ (Stap, na sigla em inglês), o processo foi descrito hoje em dois artigos na revista especializada Nature. Em mais um desses casos de felizes coincidências que levam a grandes avanços da ciência, a técnica nasceu quase do acaso – e da capacidade de observação da pesquisadora Haruko Obokata, bióloga do Centro Riken e uma das autoras do estudo. A ideia lhe ocorreu ao observar que células comuns espremidas num tubo capilar encolhiam para o tamanho de células-tronco. 

Seu grupo, então, submeteu diversos tipos de células de camundongos recém-nascidos (linfócitos, células musculares, da pele e do cérebro, por exemplo) a diferentes tipos de estresse, como alta temperatura e excesso de cálcio. Os resultados mostraram que essa exposição foi capaz de despertar a habilidade da célula adulta de se transformar em célula pluripotente – o melhor resultado foi obtido com a imersão em soluções moderadamente ácidas, com pH de 5,5. Para demonstrar o potencial das novas células-tronco, os pesquisadores as injetaram em embriões de camundongos e observaram sua multiplicação e diferenciação em diversos tipos de tecidos e órgãos. 

Mais rápida, barata e eficiente

O estudo com células-tronco é uma das áreas mais promissoras da medicina e sua utilização pode levar, por exemplo, ao desenvolvimento de terapias regenerativas e de órgãos para transplantes. Hoje, as células-tronco mais usadas em pesquisas são as de pluripotência induzida, ou iPS, também obtidas a partir da reprogramação de células adultas. No entanto, nesse caso, a reprogramação envolve o emprego de um vírus para inserir fragmentos de DNA na célula adulta, que a induzem a voltar ao estágio não-diferenciado de célula-tronco. Desenvolvida em 2006, a técnica já é utilizada em todo o mundo e seu idealizador, Shinya Yamanaka, recebeu, inclusive, o prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia de 2012.  

Células IPS
Células-tronco IPS produzidas a partir de fibroblastos humanos. A técnica de reprogramação celular é a mais usada hoje nos estudos da área. (foto: James Thomson/ University of Wisconsin-Madison)

O novo procedimento, se puder ser aplicado em humanos, teria muitas vantagens em relação às células iPS, como avalia o biólogo especializado em células-tronco e colunista da Ciência Hoje On-line, Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em teoria, seria mais seguro – por não necessitar da inserção de fragmentos de DNA na célula reprogramada, evitando mutações indesejadas –, além de mais simples e eficiente. “Um kit para reprogramação celular custa R$ 14 mil e o procedimento leva semanas, com uma eficiência de 0,1%”, compara Rehen. “Se for mesmo tudo o que promete, a técnica seria bem menos custosa e teria uma eficiência de cerca de 30%.” 

A notícia foi recebida com entusiasmo pela comunidade científica internacional. Em entrevista ao jornal britânico The Guardian, Dusko Ilic, especialista da King’s College London, classificou o estudo como “uma grande descoberta científica que irá abrir as portas para uma nova era da biologia com células-tronco”. Também ao Guardian, Chris Mason, da University College London, reforçou: “Se funcionar em seres humanos, essa pode ser a grande virada para tornar disponível uma ampla gama de terapias celulares que utilizem como base as células dos próprios pacientes”.

A conferir

De tão simples, a metodologia demorou para ser encarada com seriedade – foi rejeitada por diversas revistas antes de divulgada na Nature. “Infelizmente, nessa área já tivemos casos de estudos publicados em grandes periódicos e, pouco tempo depois, a comprovação de que eram fraudes”, avalia Rehen. “Realmente me chamou a atenção a dificuldade dos pesquisadores para publicar seus resultados e torço para que eles sejam comprovados e possam ser reproduzidos em outros laboratórios”. 

cadeira de rodas
As terapias com células-tronco são uma das maiores apostas da medicina. Com elas, acredita-se que será possível tratar lesões de medula e doenças como a de Alzheimer (foto: Flickr/ Funky64 – CC BY-NC-ND 2.0)

O próprio brasileiro planeja reproduzir o experimento em seu laboratório, onde hoje trabalha com células iPS. Apesar de animado, Rehen lembra que esse ainda é um passo muito inicial da pesquisa e, mesmo que funcione de fato, é preciso confirmar se a metodologia poderia ser aplicada em células adultas humanas – o que Obokata já vem fazendo, embora ainda sem resultados. “Se confirmado, o comportamento pode aproximar as células humanas das dos vegetais, que são capazes de regredir a estágios mais simples quando expostas a situações de estresse, como mostram estudos recentes”, afirma Rehen.

Apesar de animado, Rehen lembra que esse ainda é um passo muito inicial da pesquisa e, mesmo que a metodologia funcione de fato, é preciso confirmar se poderia ser aplicada em células adultas humanas

Outras questões também precisam ser mais bem estudadas – os cientistas não sabem, por exemplo, por que as células do corpo não estão o tempo todo se transformando em células-tronco quando entram em contato com ácidos, ou bebem um suco de frutas, por exemplo. Além disso, como as células Stap, diferentemente das células iPS, são capazes de formar tecido placentário, sua utilização poderia facilitar, no futuro, trabalhos de clonagem, como cogita Teruhiko Wakayama, da Universidade de Yamanashi, no Japão, que colaborou com o estudo.  

O fato é que a descoberta é mais um grande passo numa área que está em efervescência nos últimos anos e cria cada vez mais possibilidades para o futuro. No ano passado, por exemplo, foi anunciada a tão aguardada metodologia de clonagem de embriões humanos, uma possível alternativa às iPS para o desenvolvimento de terapias, cujas possibilidades de aplicação talvez ainda seja cedo para prever. Será que o novo método de Obokata poderá realmente promover uma efetiva revolução na área? A conferir, em breve. 

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line