Uma revolução nas estrelas

O ano de 2013 pode marcar o início de uma revolução no espaço. Ou pelo menos no que sabemos sobre ele. Um satélite que a Agência Espacial Europeia (ESA) pretende lançar ainda este ano promete fazer um verdadeiro recenseamento de nossa galáxia. O projeto Gaia pretende identificar milhões de novos astros e trazer uma quantidade de informações inédita sobre a dinâmica das estrelas, além de conhecimento sobre a estrutura e história da própria Via Láctea. Finalizado no início de julho, o satélite segue para testes e montagem final na Guiana Francesa, de onde deve partir ‘rumo ao infinito’ em outubro. 

Gimenez: Gaia será a máquina de descobertas da ESA, vai dizer do que nossa galáxia é feita e como chegou à forma atual, colocando a Europa na vanguarda da astronomia

O objetivo do Gaia é criar um mapa acurado da Via Láctea pela observação repetida de um bilhão de corpos. O satélite mapeará os céus por cinco anos para determinar com precisão a posição e o movimento de cada estrela, seu espectro eletromagnético, sua temperatura e sua composição química. “Gaia vai ser a máquina de descobertas da ESA”, afirma o diretor de ciências e exploração robótica da entidade, Alvaro Gimenez. “Ela vai dizer do que nossa galáxia é feita e como chegou à forma atual com mais precisão que nunca, colocando a Europa na vanguarda da astronomia.”

O astrônomo do Observatório Nacional Alexandre Humberto Andrei, que participou do planejamento e coordena um dos grupos de trabalho da missão em terra, explica que as expectativas são enormes para esse grande recenseamento que a missão propõe promover. “A Via Láctea tem dezenas de bilhões de estrelas, conhecemos poucas delas e em geral sem detalhes”, avalia. “Gaia vai promover uma revolução na astronomia. Ao estudar um bilhão de astros, vai nos dizer, para uma em cada cem estrelas da galáxia, como ela se move, qual seu potencial gravitacional e quem são seus vizinhos, entre outras informações.” 

Um mapa de grande precisão

Concluídos os trabalhos na Europa, os últimos retoques no Gaia acontecem na Guiana Francesa, processo que deve levar cerca de 12 semanas, e seu lançamento está marcado para 25 de outubro. Nos cinco anos seguintes, o satélite ficará posicionado num ponto exterior da órbita da Terra conhecido como ponto de Lagrange L2, onde as fontes de distúrbio para observação estelar (a Terra, o Sol e a Lua) são mais facilmente isoladas, segundo o cientista chefe da missão, Timo Prusti. Dali, cada estrela será mapeada de 70 a 100 vezes pela melhor câmera já enviada ao espaço, com um bilhão de megapixels. 

Gaia em construção
Após o fim da etapa de construção na Europa, o Gaia segue para a Guiana Francesa, onde sua montagem será concluída e o satélite passará por novos testes antes de seu lançamento em outubro. (foto: ESA)

Porém, diferente de equipamentos como o telescópio espacial Hubble, o satélite não produzirá belas imagens, mas registros unidimensionais altamente precisos. “Pense na imagem de uma parte do universo e trace uma linha reta. Esse é o registro produzido pelo Gaia”, explica Andrei. “Com dezenas de varreduras de cada área, será possível reconstruir imagens completas da galáxia e de suas estruturas mais complexas.” A quantidade de informações em cada imagem é tão grande que, segundo o brasileiro, só serão enviados à Terra os trechos ao redor de objetos identificados. A estimativa dos pesquisadores é de que o Gaia realize cerca de 40 milhões de observações por dia.

A estimativa dos pesquisadores é de que o Gaia realize cerca de 40 milhões de observações por dia

Outro ponto fundamental para esse recenseamento do espaço será o conhecimento que Gaia poderá trazer sobre quasares. Entre os objetos mais brilhantes do universo (de 100 a 1.000 vezes mais brilhantes que toda nossa galáxia), esses corpos são muito antigos e estão a milhões de anos-luz da Terra, nas fronteiras do universo que enxergamos. Seu estudo pode revelar detalhes da própria história do cosmos e permitir um mapeamento mais detalhado do espaço, já que a distância os torna virtualmente imóveis para nós – hoje, eles já são utilizados com esse fim

“Conhecemos bem alguns milhares de quasares, mas Gaia vai permitir o estudo sistemático de 500 mil deles”, conta o astrônomo, que coordena essa parte da missão. “É como se tivéssemos uma régua, onde faltam marcações e vamos adicionar um número enorme delas, para criar um sistema de referência para o céu inteiro.”  

Quasar
Os quasares estão entre os objetos mais antigos e energéticos conhecidos. Distantes milhões de anos-luz de nós, eles são boas referências para o mapeamento do espaço e seu estudo pode ajudar a entender os primórdios do universo. (imagem: NASA/ESA/ESO/Wolfram Freudling/STECF)

Obter a precisão requerida pela missão colocará à prova, no entanto, fundamentos da física e da astronomia. “Nesse espaço vasto, conceitos newtonianos não são suficientes para obter medições tão acuradas”, avalia o astrônomo brasileiro. “É preciso recorrer à teoria da relatividade geral de Einstein, testar previsões da física fundamental para medir o desvio da luz provocado pelos corpos massivos do universo, por exemplo.”

Muito mais que estrelas

O estudo do movimento e da posição das estrelas também permitirá avançar o conhecimento sobre questões como planetas extrassolares e a misteriosa matéria escura. “Uma das maneiras de encontrar exoplanetas é observar o pequeno puxão gravitacional que exercem sobre sua estrela e Gaia vai registrar isso como nunca antes”, diz Andrei. “A avaliação de perturbações dinâmicas no movimento das estrelas também poderá contar mais sobre essa enigmática matéria invisível presente no cosmos.”

Andrei: “Uma das maneiras de encontrar exoplanetas é observar o pequeno puxão gravitacional que exercem sobre sua estrela e Gaia vai registrar isso como nunca antes” 

Cientista chefe da missão, Prusti explica, no entanto, que o satélite não vai procurar por planetas habitáveis em nossa galáxia. “Ele vai expandir muito nosso conhecimento sobre exoplanetas, mas não será capaz de detectar mundos como o nosso, apenas astros maiores, como Júpiter”, esclarece. 

O satélite também não abordará uma questão astronômica que ganhou destaque após o incidente na Rússia em 2012: asteroides potencialmente perigosos para a Terra. Por sua proximidade e rapidez de movimento, eles não serão observados de forma sistemática pelo Gaia. No entanto, Andrei acredita que a interação com a comunidade astronômica em terra vai ser importante nesse ponto. “A relação será aberta, os dados serão liberados após conferências preliminares, num intervalo mínimo de cerca de um ano e meio após sua obtenção”, afirma. “Ninguém precisará esperar pela consolidação dos dados no fim do projeto, nem existirá período de exclusividade para os membros do consórcio.” 

Ameaças espaciais
Gaia não será capaz de registrar de forma sistemática objetos que possam apresentar risco de se chocar contra a Terra. No entanto, nesse quesito, poderá dar pistas que ajudem a orientar o trabalho da comunidade astronômica no solo. (imagem: NASA/JPL-Caltech)

Andrei destaca ainda que em meio à enorme quantidade de dados produzidos no âmbito do Gaia, mesmo temas que não estão entre seus objetivos científicos, como o estudo de raios cósmicos e da energia escura, podem registrar avanços. “É muito provável que encontremos mais informações do que esperamos; a missão Hipparcos, lançada em 1989, também estudava o posicionamento das estrelas, mas trouxe dados importantes com a análise do espectro eletromagnético dos astros”, lembra. “Dessa vez, talvez possamos conhecer mais sobre raios cósmicos a partir do ruído provocado pelo vento solar nas medições feitas pelo satélite, por exemplo, ou aprender sobre a energia escura com a observação de uma grande quantidade de supernovas.” 
 

Marcelo Garcia 
Ciência Hoje On-line