Viajando de carona

Não é mistério para ninguém que animais de nosso convívio são domesticados, e que cães e gatos que hoje vivem em nossas casas têm ancestrais selvagens. Curiosamente, as pessoas não são tão esclarecidas no que diz respeito às plantas, e ignoram o fato de que elas, assim como os animais, também passaram por processos de domesticação.

Animais mais aptos ao trabalho, e plantas mais produtivas ou resistentes, faziam a diferença entre o sucesso ou o fracasso de populações ancestrais em luta contra ambientes hostis. O artigo ‘Vida de cão: Mitos e certezas sobre a origem e dispersão dos cachorros na América’, na edição de julho da revista CH, traz as novidades sobre as origens do melhor amigo do homem, e vai além, esclarecendo os tortuosos caminhos que trouxeram o cachorro, de sua origem geográfica europeia, até a América do Sul. É interessante notar que em diversas ocasiões as dispersões de plantas e animais domesticados estiveram profundamente ligadas.

Um bom exemplo é o caso do bicho­-da­-seda (Bombix mori) e a amoreira­branca (Morus alba). O bicho-­da-­seda é nativo do norte da China e é utilizado para produzir tecido pelo menos desde 3500 a.C. Para produzi­lo, a lagarta tem que se alimentar de grandes quantidades de folhas da amoreira­branca. Essa é uma interessante característica do bicho-­da-­seda: ele se alimenta preferencialmente de folhas de uma única espécie de planta.

 

Ataque e defesa

A amoreira-­branca produz uma série de alcaloides que são tóxicos para outras lagartas, mas não para o Bombix mori. Tudo indica que, ao longo da evolução, as larvas e a amoreira se engajaram em uma ‘corrida armamentista’: conforme desenvolvia alcaloides tóxicos para lagartas, a amoreira reduzia os ataques por pragas e, ao mesmo tempo, impunha uma pressão sobre a população de insetos, que, por sua vez, desenvolviam mecanismos de resistência. Novos alcaloides impunham novas pressões, aumentando sucessivamente os níveis de defesa e de contra-­ataque, resultando na especialização do bicho­-da-­seda em consumir as folhas da amoreira­branca.

A evolução conjunta desses organismos determinou seu espalhamento pelo mundo

Durante milênios, os chineses aperfeiçoaram o fabrico da seda, selecionando tanto bichos-­da-­seda mais produtivos quanto amoreiras que melhor se prestassem à produção do fio. É o resultado de anos de seleção artificial de insetos que produzem uma fibra extremamente longa, resistente e em grande quantidade, que também desenvolveram tolerância ao manuseio humano e aceitam viver aglomerados, o que não acontece com larvas de seu ancestral selvagem (Bombyx mandarina).

A evolução conjunta desses organismos determinou seu espalhamento pelo mundo, já que quem quisesse participar dos grandes lucros envolvidos na produção de seda teria que possuir não apenas o bicho-­da-­seda, mas também a amoreira. Uma relação que trouxe a amoreira e o bicho-­da-­seda de seu local de origem no Oriente até regiões tão distantes como o Brasil: em 1770, o Marquês de Pombal mandou plantar as primeiras amoreiras no país, certamente já pensando em iniciar uma produção de seda na colônia (que só teve início, de fato, em 1838, com a criação do Estabelecimento Seropédico de Itaguaí, onde hoje é a cidade de Seropédica).

Outro exemplo de espalhamento conjunto de plantas e animais diz respeito aos porcos e carvalhos. Um ditado alemão diz: sob os carvalhos crescem os melhores presuntos. De fato, carvalhos e porcos têm uma forte ligação, porque os frutos da árvore são alimentos excelentes para porcos.


Um exemplo de espalhamento conjunto de plantas e animais é a relação mantida entre porcos e carvalhos. Os frutos da árvore servem de alimento para esses animais. (foto: Pixabay.com)

Conforme porcos eram domesticados, ganhando cada vez mais importância na alimentação humana, mais os homens se dedicavam ao estabelecimento de bosques de carvalho. Estes se tornaram muito comuns em toda a península ibérica (onde são chamados ‘montados de carvalho’), já que a presença dessas árvores em quantidade no ambiente era garantia de alimento para a criação de porcos, sem despesas e sem trabalho para o criador.

 

Dispersão conjunta

A produção de seda e a criação de porcos em bosques de carvalho são exemplos bem-­sucedidos de dispersão conjunta de plantas e animais. Infelizmente, nem todos os casos são tão benignos, como evidencia a história da cana-­de-­açúcar e do sapo-­cururu.


Inicialmente trazido para controlar pragas no cultivo da cana-de-açúcar, o sapo-cururu acabou se tornando ele mesmo uma praga. (foto: Pixabay.com)

A cana-­de-­açúcar é originária da Oceania, com as primeiras plantações datando de 6000 anos atrás. A cana é um excelente material para construções: reta, resistente e maleável; além de muito fácil de ser propagada.

Uma planta gostosa, útil e fácil de cultivar está fadada a se espalhar: da Oceania, a cana seguiu para ilhas do Pacífico e chegou ao continente asiático. A invasão da Índia pelo imperador persa Dario, em 500 a.C., levou ao mundo árabe a “cana que dá mel sem abelhas”. Os árabes a introduziram no Mediterrâneo e ela passou a ser cultivada na Itália, Espanha e no Sul da França, mesmo com o clima inadequado para o seu crescimento.

A descoberta das Américas marcou a expansão da produção da cana em todo o mundo. O açúcar de cana se tornou um negócio verdadeiramente globalizado: a Holanda produzia cana no Suriname; a Espanha em Cuba; Portugal no Nordeste brasileiro; os franceses na Guiana, enquanto os ingleses dominavam plantações na Jamaica e em inúmeras pequenas ilhas caribenhas.

Infelizmente, o cultivo de cana é também bastante insalubre: a densidade da plantação, aliada à umidade e ao calor do ambiente são ideais para a proliferação de todo tipo de insetos. Ratos são frequentes, roendo os caules em busca da doçura da polpa, e, com os ratos, vêm as cobras.

No fim do século 19 – portanto, antes do advento dos inseticidas modernos –, os cientistas envolvidos no cultivo de cana­de­açúcar decidiram utilizar sapos­-cururus, típicos do Brasil, para controlar pragas nos canaviais de outros países. Os sapos combatiam insetos e ratos e foram vistos como a solução para melhorar as condições de cultivo. Eles foram levados para nada menos que 138 países, se tornando o experimento de controle biológico de pragas mais extenso da história. Mas o sapo acabou se tornando, ele mesmo, uma praga, e agora está classificado entre as espécies mais invasoras do mundo.

A ‘corrida armamentista’ entre o bicho­-da-­seda e amoreiras-­brancas determinou o espalhamento desses dois organismos pelo mundo, enquanto a relação entre porcos e carvalhos foi suficiente para alterar a paisagem da península Ibérica, estimulando o estabelecimento de bosques de carvalho. Mas nem sempre a relação entre plantas e animais foi bem­-sucedida: os sapos-­cururus utilizados como controle de pragas contam uma história sobre boas intenções com resultados catastróficos. Um caso onde cientistas empenhados em resolver um problema acabaram causando desequilíbrios ecológicos gigantescos.

 

Luiz Mors Cabral
Instituto de Biologia
Universidade Federal Fluminense