Vizinhos tímidos

Um dos conhecimentos mais básicos sobre astronomia e que aprendemos ainda na tenra infância é que o nosso sistema planetário tem oito planetas (Plutão, ainda sentimos sua falta!). Mas pode ser que os livros escolares precisem ser reescritos (novamente!) em algum momento nas próximas décadas: um conjunto de simulações baseadas em anomalias na órbita de objetos muito distantes do Sistema Solar mostrou que podem existir um, dois ou mesmo quatro planetas nunca observados para além da órbita de Netuno.

Um estudo realizado por um grupo liderado pelo astrônomo Carlos de La Fuente Marcos, da Universidade Complutense de Madri (Espanha), analisou o comportamento estranho de 13 objetos transnetunianos extremos (ETNOs, na sigla em inglês). De forma geral, os ETNOs são objetos muito distantes do Sol, com um periélio (maior aproximação com nosso astro) superior a 30 unidades astronômicas (UA, equivalente à distância entre a Terra e o Sol) e o raio maior da elipse que descreve sua órbita acima de 150 UA.

As simulações e análises estatísticas mostram que a presença de pelo menos dois planetas além da órbita de Netuno poderia ser a responsável pelas interferências gravitacionais que parecem afetar os ETNOs

Segundo as previsões dos cientistas, os objetos estudados deveriam se distribuir de forma mais aleatória do que se observa na prática. As simulações e análises estatísticas reforçam estudos similares anteriores e mostram que a presença de pelo menos dois planetas além da órbita de Netuno poderia ser a responsável pelas interferências gravitacionais que parecem afetar os ETNOs.

Um trabalho complementar do mesmo grupo analisou a trajetória do cometa 96P/Machholz 1. Esse cometa de curto período que orbita bem mais próximo da Terra sofre a influência de um fenômeno conhecido como mecanismo Kozai, quando a gravidade de um corpo distante (no caso, Júpiter) interfere de forma bastante específica em sua órbita, inclinação e excentricidade. A interferência é bem parecida com a observada nos ETNOs.

“Confirmamos resultados anteriores, com mais detalhes, e mostramos que os objetos transnetunianos podem estar sob a influência do mesmo mecanismo que age sobre um corpo conhecido e bem estudado, muito mais próximo do nosso Sol”, pondera Marcos. “A questão é que, para que de fato essa dinâmica seja a mesma, teriam que existir não só dois, mas quatro planetas escondidos muito além da órbita de Netuno.”

Planetas desconhecidos
A existência de planetas desconhecidos para além da órbita de Netuno é uma das explicações possíveis para o comportamento de corpos celestes que transitam naquela região do espaço. (imagem: Nasa/ JPL-Caltech)

A formação desses supostos planetas, no entanto, não é explicada por nenhum modelo atual de formação do nosso Sistema Solar, uma das principais críticas ao trabalho. Porém, registros recentes do observatório Alma e trabalhos de outros grupos sugerem que planetas poderiam se formar bem longe de sua estrela central, talvez até a 200 UA.

Outra questão que levanta incertezas sobre as simulações do grupo de Marcos é a quantidade limitada de objetos estudados, um problema que só o tempo poderá resolver. “Há muitos estudos sendo realizados nessa área e eles devem encontrar outros ETNOs, o que permitirá um entendimento maior do que está ocorrendo naquela região. Acreditamos que essa é apenas a ponta do iceberg.”

Mundos misteriosos

O trabalho é puramente teórico, os pesquisadores não realizaram qualquer observação, apenas fizeram a análise estatística e a simulação das órbitas dos ETNOs. Segundo eles, os possíveis planetas deveriam ter entre 2 e 5 vezes a massa da Terra e estariam localizados a mais de 200 UA (talvez a distâncias maiores, como 600 UA ou mesmo mil UA). Para se ter uma ideia, o longínquo e rebaixado Plutão está a menos de 40 UA. “A essa distância, eles poderiam passar despercebidos por todas as observações por muito tempo, pois não emitem luz, apenas refletem a luz solar, e a quantidade de luz refletida por Netuno seria cerca de 44 vezes maior do que a de qualquer corpo a essa distância”, pondera o astrônomo.

Marcos também explica que os ETNOs costumam ser observados em seu periélio, quando estão mais próximos do Sol, mas esses planetas escondidos se moveriam em órbitas muito longas e quase circulares, nunca ficando a menos de 200 UA do Sol. “Eles são intrinsecamente escuros e se movimentam muito lentamente, em uma órbita muito grande, são diferentes de tudo que conhecemos hoje”, diz. “É muito natural que nunca os tenhamos observado, mas hoje podemos inferir sua presença devido ao efeito da sua gravidade em outros corpos, algo similar ao que fazemos com buracos negros.”

Roig: Apesar de a existência de um possível planeta além da órbita de Netuno ser algo debatido há tempos, há outras alternativas para explicar o comportamento dos ETNOs

Por tudo isso, é melhor esperar antes de reescrever os livros escolares, já que não devemos contar com a descoberta de novos vizinhos tão cedo. Transformar essas previsões teóricas em descobertas reais é um trabalho quase sem esperanças na atualidade. “Observar de forma direta um objeto um pouco maior do que a Terra a mais de 200 UA é impossível hoje, mesmo com o Hubble”, avalia Fernando Roig, astrônomo do Observatório Nacional. “Ainda que fosse possível, há outro problema: sem ter uma previsão de em qual região do céu o objeto vai estar, é como procurar uma agulha num palheiro.”

Roig explica que, apesar de a existência de um possível planeta além da órbita de Netuno ser algo debatido há tempos, há outras alternativas para explicar o comportamento dos ETNOs. “Perturbações da maré galáctica, perturbações de estrelas próximas, perturbações do aglomerado onde o Sol se formou, captura orbital dos ETNOs, há outras opções, algumas mais eficientes que outras, mas nenhuma fornece uma opção definitiva”, avalia. “Pode até ser uma mistura de vários efeitos.”

Sem dúvida ainda há muito que pesquisar e novos equipamentos no futuro podem nos dar mais pistas sobre as regiões mais distantes do Sistema Solar. O que podemos fazer, por ora, é buscar simulações cada vez mais aprimoradas, que permitam restringir os parâmetros de tais planetas (seu número, massa, distância, características orbitais), se de fato existirem, ou descartá-los completamente. “Um dia, porém, se for confirmada a descoberta de mais planetas no Sistema Solar, isso seria um fato notório e nos faria repensar várias teorias que temos hoje sobre a formação e evolução do nosso sistema”, cogita Roig.


Marcelo Garcia

Ciência Hoje On-line

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