O boto vai virar lenda?

O boto-cor-de-rosa é um dos mais icônicos e folclóricos animais da Amazônia. Mesmo protegido pela legislação brasileira, uma nova atividade tem pressionado suas populações na região: assim como os jacarés, ele tem sido caçado ilegalmente para servir de isca na pesca de um bagre conhecido como piracatinga. O fato tem causado preocupação em pesquisadores e entidades não governamentais, que pedem mais esforços na proteção do bicho, endêmico dos rios amazônicos.

A piracatinga (Calophysus macropterus) é uma espécie de peixe que se alimenta de carniça e gordura. De forma geral, os jacarés são os animais mais utilizados como isca, devido ao seu grande número e à facilidade de encontrá-los na região. Porém, são os botos as iscas mais valorizadas pelos pescadores.

César: “A pesca da piracatinga está promovendo uma verdadeira matança de botos na Amazônia e ameaçando as populações do animal.”

“O boto-cor-de-rosa possui uma carne com alto teor de gordura e, por isso, é mais atrativo para a piracatinga, além de ele ser um animal dócil, sociável e fácil de capturar”, explica o ecólogo Joné César, diretor executivo da Associação Amigos do Peixe-Boi (Ampa), que coordena e apoia pesquisas científicas para preservação dos mamíferos aquáticos da Amazônia, como o boto. “A pesca da piracatinga está promovendo uma verdadeira matança de botos na Amazônia e ameaçando as populações do animal.”

O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) reconhece a dificuldade de fiscalizar a região e de flagrar os crimes no momento em que acontecem. “A Amazônia é muito extensa, a locomoção é feita principalmente pelos rios, e temos grande dificuldade para fiscalizar mais de um milhão de quilômetros quadrados em que essa atividade pode estar ocorrendo”, pondera Luciano Evaristo, diretor de proteção ambiental do Ibama. “Por isso, é muito importante contar com o apoio da população, na forma de denúncias, mas isso não ocorre com frequência.”

Contornando o problema

Como uma forma de amenizar o problema, o governo federal impôs uma moratória que entrou em vigor em janeiro de 2015, a qual proíbe a pesca, a estocagem e a comercialização da piracatinga em todo o território nacional por cinco anos. Dessa forma, busca proteger as populações de botos e jacarés até que outras soluções sejam encontradas. O descumprimento da determinação caracteriza crime ambiental e está sujeito a cancelamentos de licenças e permissões ou registros da atividade pesqueira, multas e prisões.

Piracatinga
Desde janeiro de 2015, a pesca e a comercialização da piracatinga estão proíbidas por cinco anos, na tentativa de proteger as populações de botos e jacarés usados como iscas nessa atividade. (foto: Diogo Lima)

Nesse ínterim, a ideia é que organizações ambientais trabalhem conjuntamente com o Ministério do Meio Ambiente na busca de outras opções para a pesca da piracatinga. “Um dos maiores problemas é operacional, é muito fácil matar o boto”, ressalta César. “Por isso, uma ideia é desenvolver iscas alternativas e de fácil acesso, como vísceras de outros animais e restos industriais não utilizados de peixes.”

A previsão é de que o foco da fiscalização no período da moratória sejam os frigoríficos. “Nosso pessoal no Ibama já está mapeando todas essas instalações e, se alguém vender ou transportar piracatinga a partir de janeiro deste ano, poderá ser preso”, destaca Evaristo. “Inclusive já contatamos as autoridades colombianas, para onde vai a maior parte da piracatinga, para que nos ajudem a combater a prática ilegal.”

Solução?

A medida é importante, mas muitos especialistas alertam que ela não é suficiente para garantir a proteção dos botos amazônicos. O Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e a Ampa, por exemplo, têm alertado ao longo dos últimos meses que o dano acumulado até o fim de 2014 pode ser praticamente irreversível para as populações do mamífero aquático em determinadas regiões da Amazônia.

Botos-cor-de-rosa
Especialistas alertam que o dano às populações de boto-cor-de-rosa acumulado até o fim de 2014 pode ser praticamente irreversível. (foto: Jonne Roriz/ Ampa)

Já a oceanógrafa Miriam Marmontel, pesquisadora do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá que acompanha desde 2003 a pesca de piracatinga no município de Tefé, no Amazonas, acredita que a moratória não terá um efeito muito significativo, pois a área é muito extensa e a capacidade dos órgãos de fiscalização, limitada. Além disso, ela ressalta que, embora as mortes de botos ocorram, não há comprovação dos altos números frequentemente divulgados na imprensa, nem dos prognósticos de desaparecimento da espécie a curto prazo.

Segundo a pesquisadora, muitas mortes documentadas ou suspeitas atribuídas à atividade de pesca de piracatinga podem ter outras causas. “A moratória não resolverá o problema dos abates por conflitos que existem na área, que ocorrem por muitos motivos, como o medo em relação aos jacarés, a crença de que botos são seres encantados que podem engravidar mulheres e a própria competição entre o boto e o pescador pelos peixes”, explica. “É preciso criar um programa para envolver e educar a comunidade, desenvolvendo estratégias conjuntas de valorização dos recursos naturais.”

Migueis: “A população de botos corre risco sim! Se nada mudar, é possível que, em 2060, a espécie seja extinta”

A pesquisadora também atenta para a renda complementar que a pesca da piracatinga significa para os pescadores. “No período de defeso, algumas espécies de peixes e crustáceos da região ficam protegidas pelo Ibama, ou seja, não podem ser apreendidas, e os pescadores recebem uma assistência financeira; mas a venda de piracatinga, que não é protegida, é uma forma de complementar essa renda”, afirma. “É muito complicado julgar se esse adicional pode ser dispensado por um comunitário.”

O biólogo Antonio Miguel Migueis, da Universidade Federal do Oeste do Pará, acredita que a moratória é um passo inicial para impedir a mortalidade de botos e jacarés, mas pode não resolver o problema. “A população de botos corre risco sim! Se nada mudar, é possível que, em 2060, a espécie seja extinta”, considera. “Mas os pescadores deveriam ter sido ouvidos sobre os motivos de matarem esses animais, porque é possível que a pesca e a venda da piracatinga continuem acontecendo, de forma mascarada.”

Confira galeria de imagens do boto-cor-de-rosa.

Isabelle Carvalho
Especial para CH On-line