O indivíduo, a história e a genética

O Brasil foi forjado, grosso modo, pela interação de europeus, africanos e ameríndios. Foram as interações singulares e multifacetadas entre esses indivíduos que guiaram nossa história e deram a nossa população seu caráter heterogêneo e diversificado. Esse aspecto individual – diverso e livre – do homem foi justamente foco das palestras que marcaram o segundo dia de comemorações do aniversário de 30 anos do Instituto Ciência Hoje, na sexta-feira (15/6). 

Na ocasião, o auditório da Casa da Ciência, em Botafogo (RJ), recebeu o geneticista Sergio Danilo Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e o historiador José Murilo de Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), para debater a evolução recente da genética e da história. Os pesquisadores destacaram a individualidade para, de um lado, refutar a classificação do brasileiro segundo conceitos errôneos de ‘raça’ e, de outro, apresentar uma compreensão moderna e nada determinista da história.

Um povo igualmente diverso

Com muito bom humor, a palestra de Pena, ‘As raízes ancestrais e a evolução do povo brasileiro’, apresentou resultados obtidos desde 1995 no estudo do ‘ancestroma’. O termo é uma brincadeira com outras expressões comuns na genética, como genoma e proteoma, usada pelo geneticista para se referir às características genéticas que formaram o povo brasileiro. 

Até em nossos genes, somos descendentes de europeus, índios e negros, ao mesmo tempo e de forma muito individual; por isso não faz sentido falar em raça

A ideia principal foi utilizar o código genético – mais especificamente, o cromossomo Y, traço passado de pai para filhos homens, e o DNA mitocondrial, passado da mãe para todos os filhos – como uma espécie de máquina do tempo capaz de identificar a contribuição de brancos, negros e índios para a configuração genética da população. Os resultados foram muito compatíveis com as relações sociais e os fluxos populacionais que constam na história do Brasil e denunciaram a pouca adequação de conceitos de raça para classificar a população. 

No geral, o pesquisador explica que foram encontrados uma grande mistura genética e grupos muito parecidos geneticamente, independentemente da cor da pele, sem nenhum padrão identificável “Até em nossos genes, somos todos descendentes de europeus, índios e negros, ao mesmo tempo e com variações muito individuais; por isso não faz sentido usar qualquer referência à raça”, completou. 

Quadros sobre genética da CH
‘Adoração dos Reis Magos’, de Grão Vasco, 1501-1506 (esq.) e ‘Redenção de Can’, de Modesto Brocos, 1895 (dir.), telas citadas por Pena para ilustrar a miscigenação do povo brasileiro. Abaixo, a abertura do artigo original publicado pelo biólogo na edição 159 da revista ‘Ciência Hoje’, em 2000.

As pesquisas repercutiram bastante na mídia nacional e internacional e um dos artigos com os resultados foi publicado em primeira mão na própria Ciência Hoje em 2000. “O fato de termos publicado primeiro na CH foi um reconhecimento da importância de levar a ciência à população, papel em que a revista sempre se destacou.”

Sergio Pena foi colunista da Ciência Hoje On-line de 2006 a 2011. Confira as colunas publicadas pelo geneticista e uma resenha sobre seu livro Igualmente diferentes, de 2010.

O reino da liberdade

Se a genética aponta indivíduos muitos diversos, a compreensão da individualidade também revolucionou o estudo da história. Na apresentação intitulada ‘História se divulga?’, José Murilo de Carvalho abordou as mudanças nesse campo de estudo ocorridas nas últimas décadas, com o abandono de seu caráter determinista e cientificista. “Até 1970, o passado determinava o presente, os mortos governavam os vivos”, lembrou. “Hoje, a história é escrita e reescrita, a ideia de verdade foi relativizada.”

Hoje, há uma riqueza extraordinária, pois tudo se tornou historicisável e tudo pode se converter em registro histórico, até esta palestra

Para o historiador, apesar dos muitos benefícios, as mudanças também trouxeram dificuldades ainda não totalmente equacionadas. “Hoje, há uma riqueza extraordinária, pois tudo se tornou historicisável e tudo pode se converter em registro histórico, até esta palestra”, explicou Carvalho. “O problema é que isso pode afastar história e ciência, aproximá-la da literatura. É preciso equilíbrio; avaliamos variedades mais amplas de documentos – contos, crônicas etc. –, mas precisamos indagá-los de forma correta.” 

Nesse contexto, divulgar história não é tarefa simples. Segundo o historiador, é importante mostrar ao leitor como se estuda a disciplina hoje. “Isso vai ajudar a desenvolver um senso crítico nada determinista, voltado para a construção da sociedade democrática”, defendeu. “Essa questão é complicada quando falamos de história, porque é difícil ensinar algo novo a quem acha que já sabe tudo”, completou. 

Para divulgar história é preciso mostrar como se estuda a disciplina hoje, ajudar a desenvolver um senso crítico nada determinista, voltado para a construção da sociedade democrática 

Carvalho criticou, ainda, iniciativas literárias de grande sucesso editorial, que reforçariam um modo ultrapassado de encarar a história. “Livros como 1808 vulgarizam a história, perpetuam uma visão conservadora e determinista, onde tudo tem um lugar bem arranjado”, exemplifica. Para o historiador, esse tipo de publicação dialoga mais com memória nacional do que com história, seria uma espécie de mitologia nacional – “mentiras que despertam virtudes cíveis”, como a proclamação da República com uma espada desembainhada e sobre o lombo de um cavalo branco.   

Na coluna ‘Em tempo’, da CH On-line, a historiadora Keila Grinberg, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), também aborda mais questões que têm mobilizado o campo do ensino e da divulgação da história (leia ‘A tal da outra história’, ‘Historiadores pra quê?’ e ‘Disciplina com sentido’).

A festa não para

A programação das comemorações começou na quinta-feira (14/6), com a realização de uma cerimônia que culminou com a abertura da exposição ‘Ciência Hoje 30 anos’. Os eventos continuam nesta semana, com palestras dos biólogos Franklin Rumjanek, um dos diretores do ICH, e Jean Remy Guimarães, editor de ciências ambientais da CH, ambos da UFRJ. Na quarta-feira (20/6), Rumjanek apresenta o tema ‘Biologia hoje’. Dois dias depois (22/6), no clima da Rio+20, Guimarães fala sobre ‘Sustentabilidade hoje’ e lança o livro Terra em transe – Crônicas de um planeta em risco. As duas palestras começam às 17h.

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line