Proposta de pé

Junho de 2014. O Itaquerão lotado recebe a seleção brasileira para a abertura da Copa do Mundo. Um adolescente paraplégico entra em campo numa cadeira de rodas, com a camisa do Brasil. Próximo ao círculo central, se levanta, caminha cerca de 20 passos incertos e dá o primeiro chute na brazuca. Se nossos estádios ficarem prontos até lá e se tudo der certo para o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, da Universidade Duke, nos Estados Unidos, e do Instituto Internacional de Neurociência de Natal (IINN), o público poderá presenciar essa cena daqui a 13 meses. 

Em palestra realizada nessa terça-feira (21/05), no auditório da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), no Rio de Janeiro, o pesquisador apresentou suas expectativas e sonhos para o projeto Walk Again (andar de novo, em português). A iniciativa pretende desenvolver exoesqueletos movidos ‘por pensamento’ para permitir que pessoas com danos motores possam voltar a andar e recuperar a sensibilidade dos membros afetados. 

Com o evento internacional tão próximo, há muito ceticismo em relação à possibilidade de o feito se concretizar. Mas Nicolelis está confiante

Com o evento internacional tão próximo, há muito ceticismo em relação à possibilidade de o feito se concretizar – até porque um grande salto tecnológico precisaria ser dado. Mas Nicolelis está confiante. “Se tudo der certo, vamos mostrar ao mundo uma nova neurociência e afirmar que o Brasil não tem apenas bom futebol, mas muito boa ciência também”, profetizou, com a emoção habitual, o neurocientista. “Será um chute da ciência brasileira por toda a humanidade”, completou, com a voz embargada. 

Fruto de uma parceria do IINN com a Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), o projeto tem como base científica todo o conhecimento sobre a interface cérebro-máquina desenvolvido por Nicolelis nos últimos anos. No início da década de 2000, por exemplo, sua equipe da Universidade Duke conseguiu fazer um macaco mover um braço mecânico apenas com sinais nervosos. Em 2007, mostrou que esse tipo de controle poderia ser obtido remotamente e, em 2011, macacos controlando um braço virtual conseguiram reconhecer, na forma de impulsos nervosos, até a textura de objetos.

Nesse período, a capacidade de registrar a atividade neuronal aumentou muito – se antes era possível ‘ler’ 100 neurônios por vez, agora já são dois mil – e Nicolelis quer chegar aos 10 mil ainda este ano, o que dará mais precisão aos movimentos. 

Nicolelis fala no vídeo abaixo sobre a capacidade de medir a atividade elétrica dos neurônios

Além disso, as pesquisas também têm obtido sucesso em outro ponto central para a construção de exoesqueletos que se movimentem em tempo real: a resposta mecânica aos impulsos. No caso do estudo de 2011, por exemplo, o cérebro do macaco nos Estados Unidos conseguiu movimentar um robô no Japão 20 milissegundos antes do próprio animal realizar o movimento. 

Grana verde e amarela

Desde 1988 nos Estados Unidos, o neurocientista comemorou a realização do projeto Walk Again no Brasil, com investimento nacional. “Boa parte de minhas pesquisas foi feita nos Estados Unidos, com dinheiro americano”, afirmou Nicolelis. “Queremos mostrar que o Brasil pode fazer ciência capaz de impressionar o mundo e bancada por nós”, completou.

Também presente no encontro, o presidente da Finep, Glauco Arbix, destacou o investimento de R$33 milhões da agência no projeto. “Pode parecer um investimento alto para os padrões nacionais, mas perto das possibilidades é quase nada”, afirmou. “É claro que estamos falando de pesquisa científica, então os resultados podem não ser exatamente os esperados. Mas o trabalho é sério, criterioso e tem muito potencial.”

A AACD tem empregado os recursos na criação de um moderno centro de reabilitação e no desenvolvimento do primeiro simulador de locomoção completo do mundo. Nele, os pacientes usarão o cérebro para controlar modelos virtuais de si mesmos, de forma a mapear os impulsos nervosos ligados ao movimento e às sensações táteis – que serão utilizados para comandar os exoesqueletos em tempo real. 

“Já temos bons resultados com macacos e começaremos a trabalhar com humanos em junho”

“Já temos bons resultados com macacos e começaremos a trabalhar com humanos em junho”, disse Nicolelis. Os primeiros dez voluntários com lesão medular incompleta – ainda com algum grau de movimento – serão selecionados pela associação. Para a Copa, o escolhido deverá ter até 1,70m e 70kg.   

Uma vez superadas as dificuldades técnicas e desenvolvido um exoesqueleto de fato funcional, restará solucionar a questão financeira, já que o equipamento deverá custar caro. “Sem dúvida os grandes desafios vão ser transferir a tecnologia para o SUS [Sistema Único de Saúde] e produzir em escala, para reduzir custos”, avalia Nicolelis. “Uma das formas de buscar resolver isso é através de parcerias para troca de conhecimento e tecnologia com outros centros e instituições do país.”

Made in Macaíba

Além de destacar a tecnologia, o neurocientista também mostrou ‘espírito patriótico’ ao falar do trabalho do IINN no Rio Grande do Norte. “Mostramos para o mundo um modelo de pesquisa made in Macaíba, que vê a ciência como agente de transformação social”, defendeu, em referência ao município na periferia de Natal onde o instituto funciona. 

IINN
Instituto Internacional de Neurociência de Natal tem a proposta de realizar pesquisa de ponta e levar desenvolvimento social para área pobre do Rio Grande do Norte. (foto: IINN)

No início dos anos 2000, a região tinha péssimos índices de educação e de desenvolvimento. Segundo Nicolelis, o IINN tem ajudado a melhorar esses índices, promovendo ações que vão desde a implementação de um pré-natal de referência até laboratórios de educação infantil. “Para James Heckman, prêmio Nobel de economia, o investimento na primeira infância é o que gera mais retorno”, afirmou Nicolelis. “Nossa intenção foi despertar o prazer de aprender nas crianças e mostrar a educação como um caminho para a felicidade.” 

“Nossa intenção foi despertar o prazer de aprender nas crianças e mostrar a educação como um caminho para a felicidade” 

Desde 2007, cerca de cinco mil crianças foram atendidas pelas iniciativas de ensino desenvolvidas pelo centro potiguar. O plano agora é inaugurar um colégio de tempo integral dentro do instituto, que passará a atender da primeira infância até a pós-graduação. 

O pesquisador ressalta que o caráter social acompanha o investimento de ponta. “Hoje temos instalações como as dos melhores centros internacionais, uma ótima equipe e parcerias com cientistas de todo o mundo”, destacou. “Macaíba pode ser nosso vale do Silício!” 

Apesar do entusiasmo, dos bons resultados e das nobres intenções, Nicolelis e seus trabalhos vêm, nos últimos anos, gerando polêmicas. Em 2011, parte significativa de sua equipe no IINN deixou o instituto, insatisfeita com a gestão do neurocientista. Este ano, em meio a publicação de dois trabalhos importantes em periódicos de grande impacto, pesquisadores brasileiros e ex-colegas de Nicolelis questionaram a sua conduta no desenvolvimento de um dos trabalhos.  

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line