África: muito além de estereótipos

Físico e divulgador de ciência no canal Ciência Nerd
Universidade Federal de Juiz de Fora

O cinema e a mídia costumam retratar o continente africano como um grande país exótico e selvagem, associado a miséria, guerras e doenças. Essa imagem distorcida não reflete a pluralidade cultural, a riqueza e os avanços da região em vários setores

CRÉDITO: DIVULGAÇÃO

Imagine um país de clima tropical, onde as temperaturas são amenas e oscilam confortavelmente entre 16 ºC e 30 ºC ao longo do ano. Esse lugar possui um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) superior ao do Brasil, o que significa melhores indicadores de saúde, educação e renda para sua população. É uma república parlamentar que figura entre os 20 países mais democráticos do mundo (o Brasil ocupa a 57ª posição dessa lista). Em média, cada habitante desse país produz mais riqueza do que um habitante do Brasil – em termos mais técnicos, seu Produto Interno Bruto (PIB) per capita é maior. Menor do que os do Brasil são seus índices de corrupção, desemprego e inflação e seu custo de vida.

Você consegue imaginar a qual continente esse país pertence? Seria a Europa? Ou talvez a Oceania? É bem provável que a África não tenha sido sua primeira opção – ou sequer tenha passado pela sua cabeça. Acontece que o país descrito é a República de Maurício, um arquipélago na África Oriental próximo a Madagascar. As Ilhas Maurício (como também é conhecido) não é um caso isolado. Muitas nações africanas têm realidades sociais, econômicas e demográficas similares ou até superiores à do Brasil. 

Mas por que a imagem que temos da África é tão diferente disso? De onde vêm as informações e o conhecimento que temos sobre esse continente vasto e profundamente diverso? Quantas histórias você já ouviu diretamente de seus povos?

Um lugar de miséria?

A África é o continente que possui o maior número de países do mundo (54 atualmente reconhecidos). Mas esse fato não impede que muitas pessoas se refiram à África como uma entidade singular, quase como se fosse um único país. 

Isso fica evidente em frases como ‘eu tenho vontade de conhecer a África’, ‘existe muita pobreza na África’ ou ‘tenho um amigo africano’, que não reconhecem ou tratam com desimportância a enorme variedade entre os países desse continente e seus povos, em seus aspectos culturais, gastronômicos, linguísticos etc. Alguns autores afirmam que a diversidade é tão grande que não é possível encontrar uma única característica que possa ser tomada como verdade para todos os povos africanos. Nem mesmo os seus problemas.

Em geral, quando a África é percebida como um grande país homogêneo e sua pluralidade é ignorada, as palavras mais frequentemente associadas a ela são: miséria, fome, guerras, doenças e instabilidade política e social. 

Mas a verdade é que muitas histórias boas e belas podem ser contadas sobre a África, ainda que elas raramente estampem as capas do noticiário e os roteiros cinematográficos.

No aspecto político, poderíamos destacar que Botsuana é frequentemente citada como um exemplo mundial de estabilidade democrática, superando índices do Brasil, Itália e Bélgica. Cabo Verde também mantém um sistema democrático bem consolidado desde 1991 e possui IDH considerado alto pela Organização das Nações Unidas (ONU).  E a União Africana (organização que reúne os países da África) tornou-se membro permanente do G20 em 2023, aumentando sua influência no cenário internacional.

No campo tecnológico, poderíamos lembrar que Ruanda tornou-se referência mundial em transformação digital, sendo o primeiro país africano a implementar uma rede nacional 4G completa. O Quênia é líder mundial em pagamentos móveis por meio do sistema M-Pesa (similar ao Pix), que já existe há quase duas décadas e serve de modelo para outros países. A Etiópia construiu recentemente sua primeira usina de transformação de lixo em energia. O Marrocos sedia a maior usina solar do mundo e pretende se tornar exportador de energia limpa para a Europa. E a África do Sul está investindo R$ 21 bilhões na construção de uma usina para produzir hidrogênio verde, considerado o combustível do futuro.

No campo da saúde, a Costa do Marfim distribuiu as primeiras doses de uma nova vacina contra a malária, um marco histórico no combate à doença. A Tunísia vem mantendo a expectativa de vida da sua população superior a 76 anos, comparável a muitos países desenvolvidos. E Ruanda não apenas se reergueu de um genocídio que dizimou sua população há apenas 30 anos, como também construiu um dos sistemas de saúde mais eficientes da África, com cobertura universal e uso de drones para entrega de medicamentos em áreas remotas.

Guerras étnicas

Outra ideia muito popular a respeito da África é que as fronteiras entre seus países são artificiais, por terem sido criadas pelos colonizadores, sem levar em conta as particularidades culturais das regiões. Isso teria obrigado ‘tribos’ e etnias diferentes – e até inimigas – a conviverem em uma mesma nação, resultando em guerras infindáveis e impossibilitando o desenvolvimento dos países.

Esse argumento é tão tentador quanto simplista. Primeiramente, fronteiras entre países do mundo todo costumam ser artificiais, isto é, não respeitam necessariamente separações criadas pela natureza (como rios ou montanhas), nem levam em conta as realidades étnicas e culturais de suas populações. Fronteiras são, muitas vezes, fruto de acordos políticos e tratados humanos. 

Além disso, existem Estados ao redor do mundo que são formados pela junção de vários povos e línguas e que se mostraram viáveis e capazes de se desenvolver. Mesmo na África, especialmente antes da colonização, havia Estados onde diferentes etnias coexistiam pacificamente e se desenvolveram, como os grandes impérios do Gana e do Mali, na Idade Média.

Por outro lado, nações compostas por uma etnia majoritária nunca estiveram livres de conflitos internos intensos, como é o caso da Somália, que tem um histórico longo e complexo de conflitos internos e guerras civis. 

Ou seja, a pluralidade étnica não é, por si só, causa intrínseca de guerras e um impeditivo para o desenvolvimento. As guerras no continente africano, que de fato existem, são complexas, multifatoriais e não podem ser reduzidas a meros confrontos ‘tribais’ ou étnicos.

O papel do cinema

Essa percepção distorcida é fruto de um longo e contínuo bombardeio de notícias, filmes e programas televisivos que pintam um quadro de uma África primitiva, selvagem, parada no tempo, habitada por povos tristes e sofridos que precisam da ajuda do ‘homem branco’ do Ocidente. 

É claro que existem muitos problemas reais no continente e que muitas dessas produções mostram retratos verídicos de certas situações. Mas a África que conhecemos é uma construção histórica, fruto de uma seleção intencional de informações veiculadas sobre ela.

As imagens da África nos filmes hollywoodianos seguem padrões bem definidos, como identificou o professor Sidney Ferreira Leite, do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, em um artigo científico que analisou diversas obras

O continente é habitualmente retratado como um lugar distante e exótico, para isolar-se e esquecer-se do passado; um local para os ocidentais descobrirem seus limites; ou como um mero cenário de flora e fauna exuberantes e florestas selvagens. Seus habitantes costumam ser retratados ou como pessoas totalmente passivas e sem nenhuma importância na narrativa, ou como pessoas impulsivas e violentas (contrastando com a figura racional e pacífica do ocidental). Além disso, muitos desses habitantes têm como sonho deixar seu país para viver nos Estados Unidos ou na Europa. 

Um exemplo dessa abordagem é o filme Diamantes de sangue, sucesso de bilheteria dos anos 2000. Embora a produção seja ambientada na guerra civil de Serra Leoa, o uso constante da palavra África para se referir aos acontecimentos daquele país levam o/a espectador(a) a generalizar aqueles problemas locais e associá-los a todo o continente: multidões de refugiados, famílias desmembradas à força, exércitos de crianças e diversos problemas sociais e de saúde. Nesse contexto, o sonho do personagem sul-africano Archer, expresso de forma clara no filme, é enriquecer e deixar o continente.

Em muitas produções, o personagem de origem africana não costuma ser o protagonista, tampouco tem capacidade para transformar sua realidade local, restando-lhe apenas a opção de aguardar por ajuda humanitária ou fugir por conta própria.

Em outras obras, como as protagonizadas pelo personagem Tarzan, a África é apresentada como uma densa floresta, repleta de animais perigosos e tribos selvagens, um ótimo cenário para aventuras.

Contrapor essas narrativas por meio da comunicação e da arte torna-se uma disputa desigual, já que a produção cinematográfica dos países africanos não tem força para fazer frente às produções de Hollywood e difundir uma visão mais justa e diversa sobre sua própria cultura.

A indústria de cinema da Nigéria, conhecida como Nollywood, por exemplo, é bastante expressiva, considerada uma das três maiores do mundo, e possui impacto enorme no país e no continente. Mas os investimentos e a infraestrutura desse setor ainda são escassos, o que interfere na qualidade das produções e em sua distribuição para outros continentes. 

O perigo de uma história única

Em 2009, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie fez uma palestra que entrou para a história. ‘O perigo de uma história única’ ilustrou perfeitamente os riscos de reduzir indivíduos, povos e continentes a uma única e simplificada narrativa.

Disseminar uma história única cria estereótipos, e o problema com os estereótipos não é que sejam mentira, mas são incompletos. Essa incompletude é perigosa, pois nos impede de ver a complexidade, a riqueza e as diversas facetas da realidade. 

A persistência de uma história única sobre a África e os vários povos desse continente apaga as tantas outras histórias existentes. E isso tem um impacto profundo não apenas na percepção global sobre o continente, mas também na autoestima cultural dos povos africanos e de seus descendentes espalhados pelo mundo. 

Quando constantemente expostos a narrativas que os retratam de forma negativa, ou que os apresenta como irracionais e passivos, pode-se internalizar uma desvalorização de suas próprias heranças, levando à perda de tradições, à negação de sua identidade e à deterioração de um orgulho cultural. A própria Adichie se viu vítima desse apagamento cultural quando se percebeu contando histórias com personagens europeus, de olhos azuis, que brincavam na neve e comiam maçãs.

Não se trata de negar a existência de desafios e problemas, mas de reconhecer que existem tantas outras histórias e que elas devem ser contadas, para que haja um equilíbrio e para que os estereótipos sejam desmantelados.

A escritora finalizou sua palestra dizendo que as histórias importam. “Muitas histórias importam. As histórias já foram usadas para espoliar e caluniar, mas também podem ser usadas para empoderar e humanizar. Elas podem despedaçar a dignidade de um povo, mas também podem reparar essa dignidade despedaçada.”

Por fim, é preciso entender que a África não é um problema a ser resolvido, como a mídia e os filmes nos fazem acreditar, mas sim um universo de possibilidades a ser descoberto e celebrado, um oceano de culturas plurais que exerceram enorme influência na nossa cultura brasileira.

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