Rio de Janeiro

As manifestações populares que mobilizaram o país durante os meses de junho e julho, reivindicando inicialmente a derrubada do aumento do transporte público nas principais cidades brasileiras e mais tarde melhores serviços e maior transparência política, roubaram a cena dos jogos da Copa das Confederações e trouxeram alguns ensinamentos.

Um deles, segundo o sociólogo Luiz Werneck Vianna, é que a sociedade não espera mais uma solução vinda do alto; ela entende que as demandas têm que encontrar tradução. E as ruas estão mostrando isso: a busca pela reanimação da Carta maior de 1988.

Professor do Departamento de Sociologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Werneck Vianna analisa, nesta entrevista, o comportamento da sociedade mantida politicamente infantilizada até recentemente e interpreta a voz dos atuais movimentos sociais como um grito por autonomia e maior participação na esfera pública.

Aos menos experientes, oferece um conselho: “O importante é agir como bom surfista, que interpreta o movimento da onda e procura cavalgá-la, governá-la, aproveitar de seus movimentos, ir na sua direção e não contrariá-la”.

Ciência Hoje: Estamos vivendo, em sua opinião, um momento virtuoso de nossa história?
Luiz Werneck Vianna
: Sim. Liberou-se uma energia, sobretudo da juventude – inicialmente a universitária –, que agora se difunde por outros estratos, inclusive o popular. A vida popular entrou nessa onda, com uma capacidade de arrasto muito grande. Na gênese desse movimento estão as redes sociais, que se propuseram a largar o Facebook e ir para as ruas, com temas todos muito sensíveis, como mobilidade urbana – com o que tudo começou – e corrupção, que já vinha amadurecendo. O repentino, o sobressalto está no vulto da manifestação, mas nada do que hoje encontra expressão nas ruas estava ausente, nos últimos anos, da agenda popular. Apenas o que estava vivendo de forma larvar, em pequenos grupos, nas redes, ganhou, a partir de um estopim, essa expressividade.

Foi assim no Egito, na Tunísia, na Turquia. Foi assim na Revolução Francesa, na Revolução Russa. Há sempre um elemento precipitador, mas que não inventou as circunstâncias. As circunstâncias amadureceram, ou apodreceram, diante de todos, sem que houvesse uma intervenção. Isso ocorreu diante de uma sociedade imobilizada politicamente, com os partidos perdendo representação, força, legitimidade; com os movimentos sociais clássicos, como os sindicatos de trabalhadores, todos muito vinculados ao Estado, a agências estatais; com as lideranças ditas tradicionais, do ponto de vista político e social, perdendo aura, autenticidade.

Quando esse movimento irrompe, não encontra canais nem líderes. Quais são os líderes dessa movimentação? Qual é o Daniel Cohn-Bendit desse 1968 ironicamente brasileiro? Qual é o Vladimir Palmeira de 2013? Não existe. É uma energia liberada, que não encontra instituições. Essa nova voz das ruas é a opinião pública em estado bruto se manifestando.

Existe uma composição social específica desse movimento?
Na origem, é um movimento de classe média, de estudantes de universidades de elite. Não das classes médias tradicionais brasileiras, mas de uma classe nova, fruto da modernização capitalista do país nas últimas décadas, das novas ocupações, profissões. Nesse estrato está o elemento precipitador. O que se vê olhando pela ótica dos interesses econômicos? É uma demanda por cidadania, por participação. É um componente, com o perdão da má palavra, revolucionário na sociedade brasileira de hoje. A participação vinda de baixo como manifestação da vida popular, a sociedade querendo ser ativa na solução de seus problemas; uma cidadania de direitos e não de clientes, como vinha sendo a política dominante – em que o Estado se amplia, chama para si os movimentos sociais, induz a sua agenda, distribui bolsas. Essa demanda por cidadania se espraiou; chegou a cidades da periferia das grandes capitais, chegou a rincões. Não há como pensar que essa onda expansiva vá refluir. A intensidade dela deve diminuir, mas é uma onda que segue se espraiando e tende a se aprofundar e a deixar com ela e atrás dela nódulos de organização.

“É um movimento novo e virtuoso, uma energia a ser bem entendida para que a liberação da sua força se oriente em favor do aprofundamento da democracia, e não de seu prejuízo”

O movimento estudantil, por exemplo, acordou para a organização. Os diretórios acadêmicos estão recuperando vivacidade depois de muitos anos de letargia, em que a União Nacional dos Estudantes constituía uma agência de fachada, de suporte das políticas governamentais. Então, qual é o conceito que a meu ver expressa melhor o estado de coisas hoje existente no país? Autonomia. Cidadania autônoma; movimentos sociais autônomos; participação social na esfera pública. Não se está postulando a conquista do Estado, a quebra das estruturas estatais; é só um movimento por reformas sociais com essa angulação, a partir de uma vocalização de baixo para cima e da aspiração de autonomia, de não ser controlado nem pelo Estado nem por partidos. É um movimento novo e virtuoso, uma energia a ser bem entendida para que a liberação da sua força se oriente em favor do aprofundamento da democracia, e não de seu prejuízo.

As ruas estão traduzindo e exercendo uma função de poder constituinte, não no sentido de se contrapor à Constituição de 1988, mas de levá-la às últimas consequências, de reavivá-la. Nada do que está sendo evocado encontra obstáculos na Constituição, que prevê participação dos usuários dos serviços públicos na questão da saúde, educação, da criança e do adolescente, em uma série de outras dimensões. Então, as ruas estão se comportando como uma Constituinte no sentido de completar, de dar vida, forma e animação à Carta maior que está aí.

Você leu apenas o início da entrevista publicada na CH 306. Clique no ícone a seguir para baixar a versão integral. PDF aberto (gif)

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