Lançado em 2015, o filme Unity (Unidade) ficou muito pouco tempo em cartaz no Rio de Janeiro, exclusivamente no Odeon, uma sala clássica porém pouco visitada hoje na Cinelândia – berço, como o nome indica, do cinema carioca. As sessões ficaram vazias, bem vazias, não havia quase ninguém. Entrou em cartaz e saiu quase despercebido. Ignorado pela crítica dos jornais, inclusive. Uma pena.

Pelo narrado acima, pode parecer que o filme é ruim ou é daqueles que agradam apenas aficionados, alguns raros entendidos, um público especialmente culto, cult, enfim. Ou ainda, que se trata de alguma temática marginal, de pouca importância. Pois é exatamente o contrário: a película é ótima, poderia ou deveria agradar ou despertar o público geral, e a relevância da abordagem  é central e manifesta.

Unity não é propriamente uma produção sobre a ciência, ao menos no que se convencionou chamar de ‘ciências duras’ (também denominadas ‘naturais’ ou ‘empíricas’). Tendo um tom eminentemente filosófico, ético, a crítica presente no filme está na aparente, embora já muito desmascarada, neutralidade científica e na confiança desmedida de que o futuro, um bom futuro, será garantido pela tecnologia.

A crítica presente no filme está na aparente, embora já muito desmascarada, neutralidade científica e na confiança desmedida de que o futuro, um bom futuro, será garantido pela tecnologia

Trata­-se de uma narrativa analítica, com jeito de documentário, costurada  pela voz de uma centena de ‘narradores  celebridades’, como Ben Kingsley, Jennifer Aniston, Martin Sheen, Olivia Wilde, Geoffrey Rush e Anjelica Huston. O grupo foi reunido por afinidade, embora com variações, pelo conteúdo que identifica o trabalho. A exposição, multifacetada e de caráter aberto, com a qual enseja que diferentes espectadores vejam e se vejam por uma mesma tela, partilhando uma linguagem, promovendo uma identidade na plateia, é dada pelos questionamentos trazidos. A ‘unidade’ começa aí: no incômodo com os fatos, nas perguntas e no compromisso com as respostas.

Triologia integrada

Escrito e dirigido por Shaun Monson, Unity é dos mesmos produtores do celebrado Earthlings (Terráqueos). E segue na mesma linha temática. Unity, elaborado ao longo de sete anos, é o segundo filme de uma trilogia, criada pela Nation Earth, que será concluída, em 2020, por Beings (Seres). Dito de forma simplificada, cada documentário tem um foco que não significa a exclusão dos demais; muito pelo contrário, pressupõe e realiza uma compreensão integrada. A problematização acontece a partir da tríade humanidade (humankind), animais (animals) e natureza (nature, dimensão  que  aparece também retratada pela palavra tree).

O primeiro, Terráqueos, se concentra na relação comum estabelecida pela humanidade com os animais, baseada na concepção antropocêntrica, expressada pela dominação, exploração, pela coisificação dos animais. O segundo, Unity, enfatiza o olhar sobre a humanidade, revelando as suas piores e melhores potencialidades. Racismo, genocídio, especismo, compaixão, amor. Salienta  a fragilidade e a beleza da vida. Produz um sentido de humildade, de comunhão,  de irmandade. Unity mostra com singular clareza, sutileza  e sensibilidade a instrumentalidade da ciência.  A necessidade de se indagar pelos propósitos e avaliar moralmente o exercício científico.

A primeira cena de Unity é dramática e muito significativa. No palco da tecnologia a serviço do chamado ‘abate humanitário’, a filmagem apresenta o desespero do animal no corredor que o leva à morte, tentando retroceder em meio a paredes estreitas, pressentindo que, por detrás da cortina, está a ameaça, a pistola pneumática, o fim, quando então recebe uma descarga elétrica, avança e desaparece. Em um ato desse teatro macabro, com a cabeça virada para trás, se contorcendo, procurando fugir subindo pelas paredes, o animal olha para a câmera (provavelmente, mantida escondida), fixa o olhar do sofrimento, do apelo pela ajuda, pela salvação. Ele olha para o telespectador, olha para mim, para você. Ninguém o acode, ninguém impede o que está por vir. E ele some. A tela fica escura. Um luto? E vem o título do documentário… Unity.

O invisível

Muitos dos que assistem têm o sentimento da compaixão, da alteridade, se colocam na posição daquele ser, trocam o olhar, se veem nos olhos do animal. O que eu tenho a dizer sobre isso? Agora eu vi. E ter visto me cobra uma tomada de posição. Muitos, então, questionam aquela prática normalizada. Outros não. Outros respondem que se trata de um sentimentalismo. Entre esses, alguns vão sensibilizar com a sequência do filme, quando o personagem muda: passa do bovino ao ser humano. O que me faz ver o humano e faz o animal invisível aos meus  olhos (que  não veem outros olhos)?

O mote de Unity pode ser verbalizado na sentença que serve de chamada: Not the same, but equal (Diferentes, mas iguais) – slogan já invocado na reivindicação por direitos humanos, na luta pela isonomia, e que agora é aplicado para além da espécie humana. Ressalta que a igualdade para mais de um dado fático (físico) é uma construção moral: pressupõe (se) ver (n)o outro, tenha a cara ou o corpo que tiver.

Unity diz respeito à ciência, porque vai até onde a ciência não alcança. Ou, por outros termos, revolve os pressupostos éticos, chacoalha a mansidão das verdades incontestadas

Sem dúvida, a ciência  trouxe o melhor. E, lamentavelmente, gerou também o pior. Unity diz respeito à ciência, porque vai até onde a ciência não alcança. Ou, por outros termos, revolve os pressupostos éticos, chacoalha a mansidão das verdades incontestadas. Confronta as dualidades. Propõe­-se, por exemplo, a denotar a interligação entre razão e sentimento. O teor do documentário permite classificá-­lo como afinado à pós-­modernidade.

Peter Singer, professor da Universidade de Princeton [e o entrevistado deste mês na Ciência Hoje], afirmou sobre Terráqueos: “Se eu pudesse fazer com que todos vissem um filme, este filme seria Terráqueos”. O ator Joaquin Phoenix, narrador de Terráqueos, disse sobre o mesmo: “De todos os filmes que eu já fiz, esse é o que mais faz as pessoas pensarem”.

Unity é a melhor sequência que Terráqueos poderia ter. A ‘unidade’, no seu significado mais elementar, é dada pela vida. Ser vivo: este é o critério essencial que aproxima, conecta. O senso da mortalidade, a outra faceta, faz o mesmo e possui a capacidade de espantar a soberba, a arrogância. A partir daí, da vida como assoalho, quais critérios são legítimos para erguer distinções? Apresenta-­se, como critério seguinte, a senciência, qualidade sobre a qual a ciência vem fazendo constatações que expandem esse atributo para além da humanidade, como proclamou, em 2012, The Cambridge Declaration on Consciousness.

A assertiva conclusiva de Terráqueos inspira Unity e toda a trilogia: Faça a conexão (Make the connection). Esta conexão vem a ser uma mudança de paradigma, a maior de todas e, por isso, a mais difícil. Mas já está em curso sob aqueles olhos esbugalhados (e inesquecíveis) da primeira cena de Unity.

Este texto foi publicado na CH 332. Clique aqui para acessar uma versão digital da revista e ler outros textos da edição.
 

Fábio Corrêa Souza de Oliveira 
Faculdade de Direito,
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) 
Coordenador do Centro de Ética Ambiental da UFRJ

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