Diversas representações em forma de pirâmides têm sido utilizadas por décadas para representar características de ecossistemas nos livros didáticos: as pirâmides de biomassa, de números e de energia. Cada uma delas contribui para a compreensão de uma dimensão dos ecossistemas e, como é comum, todas apresentam limitações. Mas como podemos fazer um uso contextualizado e prático dessas representações para abordar uma situação do dia a dia dos nossos alunos?

Em geral, essas representações são utilizadas nas seções sobre ecologia dos livros didáticos de ciências e biologia. Nas pirâmides de energia dos ambientes terrestres, o nível trófico basal representa os produtores, em geral, as plantas. Já o segundo nível trófico contém os herbívoros (consumidores primários). E, para fins de simplificação, em geral o terceiro nível trófico inclui os carnívoros (consumidores secundários) que consomem um ou mais tipos de herbívoros. Os outros níveis (consumidores de terceira ordem e de ordens seguintes) representam os demais carnívoros. As pirâmides de energia são utilizadas para ressaltar visualmente a ideia de que a proporção da energia presente em um nível trófico incorporada pelos indivíduos do nível trófico seguinte é bastante pequena.

 As pirâmides de energia são utilizadas para ressaltar visualmente a ideia de que a proporção da energia presente em um nível trófico incorporada pelos indivíduos do nível trófico seguinte é bastante pequena

Isso porque a maior parte da energia é consumida no metabolismo dos seres vivos e não fica disponível para os consumidores seguintes. Como regra geral simples, ainda que imprecisa, admite­se que apenas 10% da energia disponível em um nível trófico é incorporada efetivamente sob a forma de biomassa no nível trófico seguinte. Ou seja, em condições naturais, 90% da energia é gasta pelos próprios consumidores primários (herbívoros) e não fica disponível para os seus eventuais predadores – consumidores de segunda ordem (carnívoros).

Embora nem sempre as representações se atenham a essas proporções, no caso de ambientes terrestres, elas sempre resultam em pirâmides de base ampla, com poucos níveis (‘andares’) e um topo extremamente estreito. Afinal, a cada degrau, 90% do que havia no andar anterior são gastos e apenas 10% ficam disponíveis.

No artigo “Dietas vegetarianas: moda ou tendência alimentar para o futuro?” desta edição, Minuzzo e El-Bacha discutem a pertinência dessas dietas para a nossa saúde e chamam a atenção para o forte impacto ambiental da pecuária, tanto devido ao desmatamento quanto ao uso da terra. Já que buscamos abordagens interdisciplinares na escola, nas avaliações e nos exames de seleção para ingresso nas universidades, talvez seja interessante entender por que as pirâmides ecológicas podem ser instrumentos interessantes para esta belecer conexões entre a ecologia, outras áreas da biologia e também outras ciências.

Precisamos mudar nosso papel na cadeia alimentar?

Quando nos alimentamos de carne (de qualquer tipo), estamos pelos menos no terceiro nível trófico de uma cadeia alimentar, já que nos alimentamos de herbívoros ou de onívoros cuja maior parte da alimentação é de origem vegetal. Alguns desses vegetais consumidos pelos herbívoros são utilizados como alimentos volumosos (capim ou silagens vegetais), enquanto outros são os principais componentes da ração do gado de corte (o milho, por exemplo). 

Pirâmide ecológica
As pirâmides ecológicas ou tróficas representam as características dos ecossistemas. (gráfico: Luiz Baltar)

Se nos lembrarmos de que apenas 10% da energia presente na biomassa de um nível trófico é incorporada no nível seguinte, a perda relacionada ao consumo de carne em relação ao de vegetais é impressionante. E ela ficará ainda mais clara se usarmos a tradicional pirâmide de energia para representar essa cadeia de produção de carne.

Compreender os impactos dessa tentativa ‘de saltar níveis da cadeia alimentar’ sem conhecimentos de geografia e de outras áreas da própria biologia depende mais de uma abordagem interdisciplinar do que parece.

Ao longo da evolução, a seleção natural tornou os ruminantes (como os bovinos) capazes de aproveitar de forma eficiente os carboidratos estruturais (em especial, a celulose, polissacarídeo predominante nas plantas) como fonte energética. Na presença de compostos nitrogenados não proteicos, carboidratos derivados da celulose são utilizados por bactérias para a síntese de aminoácidos. Aí reside o segredo da nutrição dos bovinos: eles têm a capacidade de aproveitar esses alimentos relativamente pobres em nutrientes graças a estruturas anatômicas complexas do seu sistema digestório nas quais ocorre uma relação mutualística com micro­organismos que, utilizando processos bioquímicos, transformam alimentos fibrosos em proteínas, ácidos graxos e vitaminas.

Ou seja, os bovinos têm pouca necessidade de fontes externas de aminoácidos essenciais e têm uma eficiência superior à de muitos outros mamíferos silvestres, superando por vezes a incorporação padrão de 10% da energia disponível nos produtores que consomem (plantas do primeiro nível trófico). Embora não se distancie muito dos 10%, esse aumento é muito importante para a produção de carne (quando chega a 12%, por exemplo, representa um aumento de 20% na produção!).

Abordar ligações entre agricultura e ecologia abre possibilidades de conexões com outras áreas do conhecimento. O gado bovino brasileiro, conhecido internacionalmente como ‘boi verde’, é considerado resultado da produção de uma carne mais saudável (com menos gordura) por ser predominantemente criado nos pastos, e não em confinamento.

O impacto do boi ‘verde’ pode ser assustador: ele não é exatamente amigável do ponto de vista ecológico, como a cor em seu apelido sugere

Mas existe um dilema aí. Ao demandar maior quantidade de alimentos volumosos (capim) na sua alimentação, o boi ‘verde’ requer também maiores extensões de terra. Quando combinamos essa necessidade com a demanda global de milhões de toneladas de carne por ano, o impacto do boi ‘verde’ pode ser assustador: ele não é exatamente amigável do ponto de vista ecológico, como a cor em seu apelido sugere. Frequentemente, a pecuária ocupa terras mais distantes dos grandes centros, onde a proteção por órgãos ambientais governamentais é mais difícil. Isso porque terras mais valorizadas são usadas para agricultura, cujo rendimento econômico é superior. Compreender as pressões exercidas pela agricultura e pela pecuária sobre a ocupação das terras exige conhecimentos que só a geografia e a história oferecem.

Conhecer os animais que criamos para produzir alimentos requer uma abordagem interdisciplinar. Do lado biológico, é preciso compreender sua fisiologia, seu metabolismo, além das relações ecológicas que estabeleceram com outras espécies ao longo da evolução. Entender, em conjunto com esses temas, a complexidade da pecuária como atividade social e econômica nos permitirá, talvez, fazer escolhas mais conscientes e realistas quanto à nossa alimentação. E ajudará os estudantes, e todos nós, a compreender que tais escolhas só são possíveis quando dispomos de conhecimentos de muitas áreas distintas.

Daniel Fábio Salvador
Fundação Centro de Ciências e Educação Superior a Distância do Estado do Rio de Janeiro (Cecierj)

Maurício Luz
Instituto Oswaldo Cruz, Fiocruz

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