O médico Emilio Valverde tem como seus principais auxiliares os ratos. O pesquisador espanhol, formado pela Universidade Autônoma de Madri, é o coordenador de um projeto curioso em Moçambique, no sudeste do continente africano – o uso de ratos para a detecção de tuberculose.

A ideia improvável surgiu na organização não governamental (ONG) Apopo, criada na Bélgica e hoje com braços na Tanzânia, Moçambique, Tailândia, Camboja e Angola. Inicialmente, os ratos eram treinados pela ONG apenas para encontrar minas explosivas; a alta capacidade olfativa desses animais, combinada com o treinamento correto, ajudou a salvar muitas vidas.

Com o início do projeto coordenado por valverde, em 2013, os ratos heróis passaram a contribuir para identificar uma doença que, apesar de curável, ainda faz cerca de 1 milhão de vítimas fatais ao redor do mundo; Brasil e Moçambique estão no grupo dos 22 países onde ocorrem 80% dos casos de tuberculose do mundo, de acordo com a organização

Mundial da Saúde (OMS) (ver ‘especial tuberculose’ na CH 319). Em entrevista à Ciência Hoje, Valverde conta sobre o projeto que coordena e explica como funciona o método utilizado por ele e sua equipe de roedores.

Ciência Hoje: Quando e como iniciou seu trabalho com a ONG Apopo? 
Emilio Valverde: Trabalho para a Apopo desde maio de 2012, implementando o Programa de Detecção Acelerada de Tuberculose na cidade  de Maputo, capital de Moçambique. Antes de trabalhar para a Apopo, eu era o coordenador clínico de um programa de cuidados e tratamento de HIV na Zambézia, província da região central do país. A Apopo ofereceu-me a possibilidade  de combinar as minhas duas paixões profissionais – a pesquisa e a cooperação. Os resultados do trabalho que a organização está realizando em Moçambique têm um impacto direto sobre a saúde da população de Maputo, já que conseguimos diagnosticar um elevado número de casos de tuberculose que, de outra maneira, passariam despercebidos nas unidades sanitárias do Sistema Nacional de Saúde. Assim, quando a oportunidade de trabalhar com a Apopo apareceu, não tive dúvidas.

A Apopo treinava, inicialmente, ratos para achar minas explosivas e, agora, estende sua atuação para outras áreas. Qual é a principal missão da organização? 
A principal missão da Apopo, como definida  nos nossos documentos fundacionais, é desenvolver tecnologias de detecção com ratos, para oferecer soluções a problemas globais e assim encorajar mudanças sociais positivas.

“Conseguimos diagnosticar um elevado número de casos de tuberculose que, de outra maneira, passariam despercebidos nas unidades sanitárias do Sistema Nacional de Saúde”

Qual o quadro atual da tuberculose em Moçambique? Existem altos índices de abandono do tratamento? 
Moçambique é considerado pela OMS como um dos 22 países com alta carga de tuberculose. A prevalência nacional da doença situa-se em torno de 559 casos por 100 mil habitantes. A situação é agravada pela alta prevalência da infecção por HIV no país, que é aproximadamente de 12% da população. Segundo os relatórios do Programa Nacional de Controle da Tuberculose, a taxa de sucesso do tratamento está em 87% em nível nacional, com índice de 4% de abandono. Porém, o grande desafio do país está no aumento da capacidade de detecção, que atualmente é de apenas 37%, segundo dados de 2013 da OMS. Os esforços da Apopo estão concentrados nesse sentido, tentando colaborar com as autoridades sanitárias de Moçambique para elevar o número de casos diagnosticados e tratados.

Como surgiu a ideia de usar ratos para detectar tuberculose? Por que ratos e não outro animal? 
A ideia de utilizar os ratos foi de um dos fundadores da Apopo, Bart Weetjens. A ONG  já havia empregado  os ratos com grande sucesso para achar minas terrestres, e Bart pensou que eles poderiam ser usados também para detectar tuberculose. Ele baseou-se no fato conhecido de que as pessoas com tuberculose têm um cheiro particular, que é facilmente  perceptível em fases avançadas da doença. A partir daí, considerando que os ratos têm o sentido do olfato extraordinariamente desenvolvido, achou que eles poderiam detectar a doença em fases mais precoces, contribuindo para interromper o ciclo vicioso da transmissão da tuberculose.

Qual é a espécie  de ratos que vocês usam? Quais delas podem ser utilizadas e como são escolhidos os animais?
Os ratos que utilizamos pertencem à espécie Cricetomys gambianus, também conhecida como rato gigante africano. Pensamos que outras espécies do mesmo gênero poderiam ser treinadas de maneira similar, mas até o momento não fizemos experiências que confirmem isso. São animais pacíficos, dóceis, fáceis de treinar e que gostam de realizar  tarefas repetitivas. Eles são endêmicos da África Subsaariana, e estão, portanto, bem adaptados  ao nosso meio. Os seus requerimentos alimentícios e de habitação são muito simples, e eles têm uma vida útil de aproximadamente oito anos, o que compensa as despesas do seu treinamento.

Como é o processo de treinamento dos animais e quanto ele custa?
 Os ratos começam  o seu treinamento um mês depois de nascer. Em primeiro lugar, eles aprendem a socializar com humanos,  ficam acostumados  à sua presença e a ser manipulados pelos treinadores. Depois, eles aprendem a deter-se com seu nariz fixo nos orifícios situados em uma cabine de treinamento; para conseguir e reforçar esse comportamento, o rato recebe um prêmio em comida quando fica na posição correta durante três ou cinco segundos. Posteriormente, amostras  de escarro são colocadas em baixo dos orifícios, de maneira que o rato pode perceber o cheiro delas quando  aproxima  seu nariz, e o rato passa a ser premiado unicamente quando  indica  aquelas  amostras que contêm micobactérias [bactérias causadoras da tuberculose].  Dessa maneira, conseguimos que os ratos indiquem exclusivamente as amostras procedentes de pacientes com a doença. O processo completo de treinamento demora  cerca de seis meses e, antes  de serem considerados capacitados para fazer detecção em amostras clínicas, os ratos devem  passar  com sucesso por uma série de controles de qualidade. O custo aproximado do treinamento é de 5.000 euros por rato.

“A grande vantagem dos ratos é a rapidez com que eles conseguem avaliar as amostras. Um rato treinado pode avaliar até 100 amostras em menos de 20 minutos”

Como é realizado o diagnóstico  da tuberculose  por parte dos ratos? Qual o mecanismo utilizado pelos animais nesse  processo? Que sinais o animal apresenta para indicar o resultado positivo ou negativo? 

Os ratos detectam por meio do seu sistema olfatório uma série de compostos orgânicos voláteis, que possivelmente são produzidos pelas micobactérias. O rato avalia séries de 10 amostras colocadas embaixo de uma cabine que na base tem orifícios situados acima de cada uma das amostras. O rato vai passando em ordem  por cada orifício e, quando encontra uma amostra que tem o cheiro particular da tuberculose, fica com o seu nariz junto do orifício. Às vezes, ele arranha ou morde as bordas do buraco.

O animal se expõe a algum risco, como, por exemplo, o de ser contaminado pela doença? 

Quando a Apopo começou a experimentar a avaliação de amostras com tuberculose, diversos ratos foram expostos a aerossóis de amostras positivas para a doença. Nenhum deles desenvolveu sinais, sintomas ou lesões compatíveis com a tuberculose. Além disso, as amostras são inativadas por calor quando chegam no laboratório, antes da avaliação pelos ratos. Assim, asseguramos que nem ratos nem os seus treinadores corram risco de ficar infectados por acidente.

Qual o percentual de acerto no diagnóstico? a eficiência desse tipo de diagnóstico é comparável com a do diagnóstico laboratorial? 

Os ratos identificam corretamente mais de 99% das amostras indicadas como positivas pela microscopia convencional realizada  nas clínicas colaboradoras. Eles conseguem identificar também como positivas outras amostras que chegam no laboratório da Apopo com diagnóstico negativo. Quando um rato indica como positiva uma amostra que chegou com resultado negativo, essa amostra é verificada novamente utilizando um método laboratorial mais sensível, que é a microscopia de fluorescência. Unicamente aquelas amostras  que se confirmam  positivas por microscopia de fluorescência  são notificadas  às clínicas para a procura  dos pacientes. Nos dois primeiros anos de implementação do projeto na cidade  de Maputo, os ratos detectores da Apopo conseguiram aumentar as taxas de detecção de tuberculose nas clínicas colaboradoras em mais de 44%.

Então, se o método atua em conjunto com os métodos laboratoriais já existentes, qual a vantagem da detecção por parte dos ratos? 

Atualmente, como a metodologia de ratos detectores não está ainda validada, todas as indicações dos ratos devem ser verificadas com um método aceito pela comunidade científica. A grande vantagem dos ratos, para além da sua maior sensibilidade, é a rapidez com que eles conseguem avaliar as amostras. Um rato treinado pode avaliar até 100 amostras em menos de 20 minutos. Em comparação, um técnico de laboratório levaria quatro dias para examinar ao microscópio um número  similar de amostras.  A Apopo pensa que a indicação mais clara e imediata para o uso de ratos é a redução das grandes quantidades de amostras, como, por exemplo, em grandes cidades com altas taxas de tuberculose, ou em grupos de risco, como detentos ou trabalhadores da indústria mineira.

Como reagem os moradores de Moçambique quando sabem que um rato será o ‘doutor’? 

Eles acolhem  bem a ideia quando informados. Para o paciente, o importante é ter o diagnóstico, poder ser tratado e ficar livre da doença. Em qualquer caso, os pacientes  não entram em contato direto com os ratos, só recebem os resultados da avaliação.

Seria possível fazer o diagnóstico de outras doenças com os ratos? E com outros animais? 

Há alguns projetos de pesquisa utilizando cães para o diagnóstico de diversos tipos de câncer, que ofereceram resultados preliminares promissores, mas que ainda precisam  de mais dados para serem utilizados de maneira  extensiva. Existe também a possibilidade de utilizar  os ratos para diagnosticar outras doenças. A principal dificuldade é que os ratos precisam de grandes quantidades de amostras para serem treinados e obter bons resultados, e é muito difícil encontrar doenças tão disseminadas como a tuberculose e nas quais o diagnóstico seja igualmente difícil.

Qual o destino dos ratos que não são mais capazes de realizar a função? 

Uma vez que atingem a idade limite para realizar sua função, eles são retirados e passam a viver em viveiros especiais nas nossas instalações na Tanzânia e em Moçambique até a sua morte. Alguns ratos que apresentam desempenhos excepcionalmente bons são integrados aos nossos programas de reprodução, no intuito de melhorar progressivamente as características dos ratos detectores da Apopo.

Esta entrevista foi publicada na CH 331.Clique aqui para acessar uma versão parcial da revista e ler outros textos.
 
A Ciência Hoje das Crianças também falou sobre o trabalho realizado pela Apopo. Clique aqui para ler a matéria.
 

Everton Lopes
Instituto Ciência Hoje/RJ

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