Futebol: esperança de mudar de vida

Os sujeitos das camadas populares percebem a arte popular – o futebol é considerado uma delas – como uma oportunidade de ascensão social. Por conta das desigualdades de oportunidades escolares e sociais existentes na sociedade brasileira, a remuneração obtida em atividades lúdicas e prazerosas, como o esporte e a arte popular, pode proporcionar a melhoria das condições de vida dos que se dedicam a elas, ainda que em diferentes níveis de realização e de competência. Portanto, tais atividades despertam a aspiração de crianças e jovens que vislumbram um futuro melhor para si e para sua família.

Mobilidade social, segundo a sociologia, é a movimentação ascendente e descendente na escala social, de grupos ou indivíduos

Mobilidade social, segundo a sociologia, é a movimentação ascendente e descendente na escala social, de grupos ou indivíduos. No âmbito individual, ela pode ser observada a partir da distinção entre as condições de vida do indivíduo e as do grupo social ao qual ele pertence e da diferenciação entre as gerações, como apontou o historiador inglês Peter Burke em 2002. No Brasil, o futebol parece ser o meio esportivo que oferece maiores chances para que indivíduos com pouca escolarização e qualificação profissional alterem sua posição na estrutura social, obtendo sustento e prestígio.

Uma comparação com os níveis familiares de subsistência desses indivíduos, antes de ingressarem na carreira esportiva, e com o nível médio dos indivíduos da mesma camada social revela diversas evidências de melhoria nas condições socioeconômicas ao longo de sua trajetória no esporte. Essas melhorias se revelam na remuneração, na moradia e em outros benefícios, em relação aos que permanecem naquela camada social.

Elitismo superado 

Estudos indicam que o profissionalismo, no futebol, começou no Rio Grande do Sul na década de 1930, quando os grandes clubes da época passaram a oferecer prêmios em dinheiro ou emprego aos jogadores. Essa atitude teria sido motivada pelo aumento da competição entre as agremiações esportivas: o que de início eram opções de lazer e de sociabilidade começou a se transformar em fortes rivalidades sociais e econômicas, em níveis locais e regionais. Por outro lado, os clubes também despertaram e difundiram ideais associacionistas, com valores de identificação e pertencimento, entre as elites e as demais camadas sociais que aos poucos assimilaram, de modo ativo, a nova cultura esportiva.

Nesse aspecto, a parceria e a relação de identificação entre os clubes de fábrica e as classes operárias consolidaram um simbolismo carregado de valores morais. Os operários manifestavam sentimentos de identificação, pertencimento e representatividade em relação ao clube no qual jogavam atletas vindos do operariado.

Pelada
A popularização da prática do futebol, com as ‘peladas’ nas ruas ou campos de várzea e com as ligas paralelas à liga oficial, revelou atletas de habilidade incontestável, que atraíram o interesse dos clubes de elite. (foto: Luiz Baltar)

Seguindo o pioneirismo de clubes como Grêmio e Internacional, Vasco, Ferroviária, Bangu e outros, pequenas empresas, como o laboratório Sedabel e a Francisco Xavier Imóveis, no Rio de Janeiro, também contrataram jogadores de futebol como funcionários, nas décadas de 1970 e 1980, para atuarem em seus times. Estes disputavam o campeonato amador promovido na cidade pelo Departamento Autônomo, ligado à Federação Carioca de Futebol (hoje, federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro).

O futebol mostrava forte seletividade socioeconômica em sua implantação no país, no final do século 19 e início do século 20, mas a popularização e a profissionalização do esporte dissiparam esse caráter ao longo dos anos.

A participação de pessoas das camadas populares nos clubes de futebol teria encontrado, por várias décadas, grande resistência das elites brancas que administravam – e ainda hoje gerenciam – o esporte

A participação de pessoas das camadas populares nos clubes de futebol teria encontrado, por várias décadas, grande resistência das elites brancas que administravam – e ainda hoje gerenciam – o esporte. No entanto, a popularização da prática do futebol, com as ‘peladas’ nas ruas ou campos de várzea e com as ligas paralelas à liga oficial, revelou atletas de habilidade incontestável, que atraíram o interesse dos clubes de elite. A crescente competição entre esses clubes ajudou a derrubar as barreiras postas à participação de jogadores vindos das classes menos favorecidas, inclusive negros, que marcaram o esporte por sua performance e sua origem.

Os jogadores Tesourinha e Garrincha podem ser tomados como exemplos de atletas que, devido ao talento, superaram as discriminações racial e socioeconômica da época em que viveram e alcançaram prestígio e melhor qualidade de vida pelo próprio mérito. Ambos foram contratados como empregados em fábricas, recebendo alimentação e outros benefícios, para competirem em seus times de futebol. Ao adotar o mérito como elemento principal da prática esportiva, os clubes de ponta passaram, progressivamente, a incorporar aos seus elencos jogadores vindos de outras camadas sociais.

A competitividade, ao que tudo indica, teria desencadeado a abertura do restrito espaço futebolístico do início do século, mas essa visão da competição como força de acesso ainda precisa ser mais pesquisada.

 

Você leu apenas o início do artigo publicado na CH 315. Clique aqui para acessar uma edição resumida da revista e ler o texto completo.

 

José Antonio Vianna
Departamento de Educação Física e Artística
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
e Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (IAFRS) 

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