Patrimônio cultural e mudanças climáticas

Laboratório de Arqueologia do Pantanal
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (Campus Pantanal)
Comitê sobre Mudanças Climáticas e Patrimônio do Icomos
Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais
Universidade Estadual de Campinas
Comitê sobre Mudanças Climáticas e Patrimônio do Icomos

A pressão de grandes empreendimentos econômicos, assim como a maior frequência de eventos climáticos extremos e recorrentes, põem em risco sítios e paisagens arqueológicos. Por isso, a preservação cultural não pode ser tratada de forma isolada – ela está diretamente ligada à gestão ambiental. Proteger o patrimônio cultural é um compromisso ético e coletivo, que envolve garantir a continuidade da vida em todas as suas formas.

CRÉDITO: ALINE V. CARVALHO

O patrimônio cultural, em suas dimensões materiais e imateriais, constitui elemento essencial para a identidade, a memória e a história dos povos. Não se trata apenas de ruínas antigas, sítios arqueológicos ou objetos preservados em museus. O patrimônio também está presente nas festas populares, nas tradições orais, nas práticas religiosas, nos modos de fazer artesanato e até na forma como comunidades organizam seu cotidiano. 

Mais do que vestígios do passado, são referências vivas que ajudam a explicar quem somos e de onde viemos, sustentando formas de pertencimento e modos de vida. Por isso, quando falamos de patrimônio, é preciso considerar sociedades no plural, reconhecendo que diferentes grupos sociais atribuem sentidos e valores próprios a seus bens culturais. 

Um sítio arqueológico pode ser, ao mesmo tempo, fonte de pesquisa científica, espaço sagrado para uma comunidade tradicional e símbolo de identidade local. Essa multiplicidade de significados reforça a importância de compreender o patrimônio não apenas como algo a ser preservado, mas como parte ativa da vida social e das disputas em torno da memória coletiva. 

O patrimônio cultural depende também de marcos legais que assegurem sua proteção. No Brasil, a Lei nº 3.924, de 1961, foi pioneira ao estabelecer que todos os sítios arqueológicos pertencem à União e que devem ser registrados em um cadastro nacional. 

Tal dispositivo reconhece a relevância científica e cultural desses locais, tratando-os como bens de interesse coletivo. Na prática, porém, essa proteção legal nem sempre se traduz em ações efetivas. Muitas vezes, faltam recursos, integração entre instituições e políticas públicas que garantam a preservação de forma contínua.

Além disso, a pressão de grandes empreendimentos econômicos – como obras de infraestrutura, mineração e expansão agrícola – coloca em risco sítios e paisagens arqueológicas. O debate ganhou novo fôlego em 2025, com a aprovação da Lei nº 15.190/2025, conhecida como Lei Geral do Licenciamento Ambiental.

Tal dispositivo reconhece a relevância científica e cultural desses locais, tratando-os como bens de interesse coletivo. Na prática, porém, essa proteção legal nem sempre se traduz em ações efetivas

Licenciamento ambiental

A nova legislação foi recebida com expectativa, mas também com preocupação, já que especialistas questionam se o modelo atual consegue de fato garantir a preservação diante das crescentes demandas econômicas e ambientais.

Um passo importante para enfrentar esse dilema foi a elaboração da Carta do III Fórum de Licenciamento Ambiental, promovida pelo Grupo de Trabalho sobre Licenciamento Ambiental da Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB). O documento reuniu recomendações que reforçam a necessidade de ampliar a participação de arqueólogos e comunidades nos processos decisórios, incluir cenários climáticos nas análises de impacto e fortalecer a fiscalização dos empreendimentos. 

Ao destacar essas medidas, a Carta aponta caminhos concretos para alinhar o desenvolvimento econômico à preservação do patrimônio, lembrando que a destruição de um sítio arqueológico representa uma perda irreversível para a memória coletiva do país. Entre as recomendações, está a necessidade de incorporar, nas análises de impacto ambiental, as projeções climáticas conhecidas como RCPs  –  Caminhos de Concentração Representativos, elaborados pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).

Esses cenários são utilizados mundialmente para simular diferentes trajetórias de emissão de gases de efeito estufa e seus impactos no clima futuro. Incorporá-los no licenciamento ambiental significa avaliar não apenas os riscos imediatos de um empreendimento, mas também os efeitos que ele pode sofrer e gerar em contextos climáticos mais extremos  – como ondas de calor, secas ou inundações. 

No caso do patrimônio arqueológico e cultural, essa medida é essencial, pois muitos sítios estão localizados em áreas vulneráveis, como margens de rios, encostas ou zonas costeiras.

Ao sugerir essa integração, a Carta do III Fórum reforça que pensar o licenciamento apenas em termos do presente é insuficiente. É preciso olhar para o futuro, reconhecendo que os impactos das mudanças climáticas já estão em curso e tendem a se intensificar nas próximas décadas. 

Dessa forma, os RCPs oferecem um instrumento técnico que pode aproximar a ciência climática da prática cotidiana de gestão ambiental e patrimonial, permitindo decisões mais seguras e responsáveis.

A Carta aponta caminhos concretos para alinhar o desenvolvimento econômico à preservação do patrimônio, lembrando que a destruição de um sítio arqueológico representa uma perda irreversível para a memória coletiva do país

Clima e bens culturais

As mudanças climáticas tornam o cenário ainda mais preocupante. O aumento da temperatura global, as ondas de calor, as secas prolongadas e os eventos extremos afetam diretamente a conservação de bens culturais. 

Um estudo publicado na revista Nature mostra que cerca de 52% das pessoas nascidas em 2020 enfrentarão níveis “sem precedentes” de ondas de calor durante a vida, mesmo se o aquecimento global for limitado a 1,5°C  – índice que pode subir para 92% no cenário de aquecimento de 3,5°C.

Além disso, fenômenos recorrentes – como secas, enchentes e ondas de calor, que se repetem com frequência cada vez maior  – têm ganhado intensidade significativa em razão das mudanças climáticas (figura 1).

Figura 1. Plantação alagada no inverno de Pantanal, Corumbá (MS) em 2025

CRÉDITO: ALINE V. CARVALHO

Um estudo global indicou que a exposição urbana ao calor extremo (medida por um índice conhecido como wet bulb globe temperature, acima de 30 °C) triplicou entre 1983 e 2016, e esse valor aumentaria (em aproximadamente 50%) se desconsiderarmos o efeito adicional provocado pelo crescimento populacional e o fenômeno de ilha de calor urbana.

Essa combinação – maior frequência de eventos extremos e intensificação de fenômenos recorrentes – evidencia a urgência de aproximar a agenda climática da pauta do patrimônio. Não se trata apenas de prevenir impactos únicos, mas de desenvolver estratégias capazes de lidar com ameaças constantes e em processo de agravamento contínuo.

Nesse contexto, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas oferecem uma referência importante. O ODS 11 trata da construção de cidades mais inclusivas, seguras e sustentáveis, enquanto o ODS 13 aborda o combate às mudanças climáticas e a necessidade de adaptação a seus impactos. Ambos destacam a importância de fortalecer a resiliência das comunidades e proteger o patrimônio cultural e natural.

No Brasil, essa relação é particularmente visível em áreas tombadas ou reconhecidas pelo seu valor cultural. Exemplos como o Centro Histórico de Ouro Preto (MG), a cidade de São Luís (MA), o Conjunto Arquitetônico e Paisagístico de Olinda (PE), o Cais do Valongo (RJ) –  declarado Patrimônio Mundial pela Unesco –  e o Centro Histórico de Corumbá (MS) mostram como esses espaços estão expostos a riscos que vão muito além da ação humana imediata. 

Chuvas torrenciais, deslizamentos de encostas, inundações urbanas, processos de erosão e ondas de calor alteram a dinâmica desses territórios, comprometendo tanto a integridade dos bens materiais quanto a vida das comunidades que os habitam (figura 2).

Figura 2. Residência rural nos arredores de Corumbá (MS), em 2025, com animais domésticos se refugiando no telhado

CRÉDITO: ALINE V. CARVALHO

Ao articular os ODS com a proteção desses patrimônios, reforça-se que a preservação cultural não pode ser tratada de forma isolada. Ela está diretamente ligada à gestão ambiental, à redução de riscos climáticos e à construção de cidades mais preparadas para o futuro.

As mudanças climáticas tornam o cenário ainda mais preocupante. O aumento da temperatura global, as ondas de calor, as secas prolongadas e os eventos extremos afetam diretamente a conservação de bens culturais

Modelo de governança integrada

Especialistas defendem a criação de um modelo de governança integrada para enfrentar os desafios que se colocam diante do patrimônio cultural no século 21. A proposta é reunir em uma mesma mesa órgãos públicos, iniciativa privada, pesquisadores e comunidades locais – atores que, muitas vezes, atuam de forma isolada e sem diálogo. O objetivo é romper com a fragmentação institucional e criar mecanismos mais participativos e transparentes de decisão.

Esse modelo de governança se apoiaria em três pilares principais. O primeiro é a realização de análises locais de risco, que permitam avaliar com mais precisão como enchentes, secas, queimadas ou ondas de calor podem afetar bens específicos, como um centro histórico, um sítio arqueológico ou uma festa tradicional. 

O segundo é a valorização do conhecimento tradicional em diálogo com a ciência, reconhecendo que comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas já possuem estratégias ancestrais de manejo do território que podem se somar às ferramentas tecnológicas atuais. 

O terceiro pilar é a criação de um fundo financeiro específico para garantir a preservação do patrimônio cultural diante dos impactos climáticos, medida que possibilitaria desde ações emergenciais até projetos de longo prazo.

Esse conjunto de propostas foi consolidado na Carta Brasileira do Patrimônio Cultural e Mudanças Climáticas. O documento representa um marco: pela primeira vez, a questão climática entrou de maneira estruturada no debate sobre políticas públicas de preservação cultural no Brasil. Para os especialistas envolvidos, a carta é mais do que um relatório técnico; é um chamado à ação para que gestores e sociedade entendam o patrimônio como parte essencial das estratégias de adaptação climática.

A construção desse documento ocorreu de forma participativa, a partir de oficinas regionais realizadas em diferentes biomas, que reuniram comunidades tradicionais, pesquisadores, gestores públicos e representantes da sociedade civil. Nessas oficinas, foi utilizada a metodologia de análise de risco do programa internacional Preserving Legacies, que entende o risco como resultado dinâmico da interação entre perigos, vulnerabilidades, exposições e capacidades de resposta (figura 3).

Figura 3. Diagrama de Análise de Risco do Preserving Legacies, 2024

Essa abordagem permitiu não apenas mapear ameaças, como enchentes, incêndios florestais ou secas, mas também identificar os recursos, saberes e práticas locais que podem fortalecer a resiliência das comunidades diante desses cenários.

Ao adotar esse modelo, a Carta Brasileira incorporou um olhar inovador: em vez de tratar o patrimônio apenas como vítima das mudanças climáticas, passou a enxergá-lo também como parte da solução, valorizando sua dimensão cultural, social e simbólica na construção de futuros mais sustentáveis.

Essa combinação – maior frequência de eventos extremos e intensificação de fenômenos recorrentes – evidencia a urgência de aproximar a agenda climática da pauta do patrimônio

Modelo replicável

Os resultados da Carta apontam para a possibilidade de criar um modelo replicável em todo o país, capaz de dialogar com diferentes realidades e escalas. Esse modelo não se limita à preservação de sítios arqueológicos ou de centros históricos tombados; ele amplia a discussão para incluir práticas culturais, festas tradicionais, modos de vida e memórias coletivas. 

A proposta é que cada região possa construir seu próprio plano de ação, articulando ciência, políticas públicas e saberes locais. Dessa forma, a preservação do patrimônio cultural se transforma também em uma estratégia de fortalecimento comunitário, capaz de gerar pertencimento, autoestima e capacidade de resposta diante dos impactos climáticos.

Como lembrou o pensador indígena Ailton Krenak, “o futuro é ancestral”. A frase sintetiza uma visão que vem ganhando espaço em debates sobre patrimônio e mudanças climáticas: olhar para o passado e para as tradições não como um peso, mas como uma fonte de soluções. 

Proteger o patrimônio cultural diante da crise climática não é apenas uma tarefa técnica de conservação, restrita a especialistas ou órgãos públicos. Trata-se de um compromisso ético e coletivo, que envolve garantir a continuidade da vida em todas as suas formas, promover justiça social e construir futuros mais inclusivos e resilientes. 

O desafio não é pequeno, mas a mensagem central da Carta é clara: sem a valorização da cultura e da memória, não haverá futuro sustentável.

Para os especialistas envolvidos, a carta é mais do que um relatório técnico; é um chamado à ação para que gestores e sociedade entendam o patrimônio como parte essencial das estratégias de adaptação climática

Carta do III Fórum de Licenciamento Ambiental – https://www.sabnet.org/informativo/view?TIPO=1&ID_INFORMATIVO=1214

Carta Brasileira do Patrimônio Cultural e Mudanças Climáticas – https://www.icom.org.br/conheca-a-versao-oficial-da-carta-brasileira-do-patrimonio-cultural-e-mudancas-climaticas/

O futuro do nosso passado – ICOMOS – chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://civvih.icomos.org/wp-content/uploads/Future-of-Our-Pasts-Report-min.pdf

Projeto “Preservando Legados” – https://www.heritageadapts.org/

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