Toda a atenção para a toxoplasmose

Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Nas últimas décadas, a toxoplasmose ganhou relevância no cenário da saúde pública brasileira, tanto pela gravidade da doença em pacientes com deficiência no sistema de defesa (imunossupressão) quanto pelo risco de nascimentos de crianças com sequelas da infecção. Embora o tratamento seja limitado a poucos medicamentos usados há mais de 70 anos, novas alternativas encontradas em farmácias e drogarias vêm sendo propostas com êxito. 

CRÉDITO: TOXOPLASMA GONDIIILUSTRAÇÃO 3D_ADOBE STOCK

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), 15 milhões de brasileiros que moram em áreas urbanas e 2,3 milhões de moradores rurais não têm acesso a fontes seguras de água para suas necessidades domésticas e pessoais. A má higienização causada pela falta de água potável é um fator de maior vulnerabilidade para doenças adquiridas através do consumo de alimentos e água contaminados. Esse é o caso da toxoplasmose, prevalente em todo Brasil.

Embora as autoridades não a reconheçam como doença negligenciada, o país ocupa o topo da lista de surtos e casos de toxoplasmose no mundo. Entre 2010 e 2018, foram registrados 14 surtos no Brasil, correspondendo a 56% dos 25 notificados nos últimos 50 anos.

Além de ser transmitido por via oral, o parasita Toxoplasma gondii é capaz de ultrapassar barreiras importantes do nosso organismo, como a placenta. Por isso, pode ser transmitido para o feto em desenvolvimento se a infecção ocorreu durante a gestação – é a denominada toxoplasmose congênita.

Nos bebês, a toxoplasmose congênita pode ser assintomática, além de provocar sintomas graves, como atraso no desenvolvimento, cegueira, hidrocefalia. Dentre os fatores que contribuem para a gravidade das consequências da infecção, está o período da gestação em que o feto foi infectado. Os casos de aborto são mais comuns nas infecções adquiridas no primeiro trimestre de gravidez.

Embora a maioria dos recém-nascidos com toxoplasmose congênita sejam assintomáticos, os sinais da tríade clássica da doença – retinocoroidite, calcificação intracraniana e hidrocefalia – ocorrem em mais de 10% dos indivíduos desse grupo. Há outros casos também em que a doença se manifesta com sinais não específicos de infecção aguda, como convulsões, aumento do baço e fígado, febre, anemia, icterícia, linfadenopatia, entre outros.

Alguns dos recém-nascidos desse grupo podem desenvolver sintomas clínicos e deficiências na vida adulta, afetando, sobretudo, a visão. No Brasil, a principal consequência da infecção nos fetos é a formação de lesões oculares, que corresponde a aproximadamente 80% dos casos clínicos de toxoplasmose gestacional registrados.

Políticas de saúde pública

Recentemente, presenciamos alguns avanços nas políticas de saúde pública quanto ao diagnóstico da toxoplasmose no Brasil. Um deles é a notificação compulsória dos casos de toxoplasmose diagnosticada em grávidas e recém-nascidos, após a publicação de uma portaria do Ministério da Saúde (nº 204, de 17 de fevereiro de 2016). A mais recente conquista é a incorporação da toxoplasmose na lista das 50 doenças que devem ser analisadas por meio do teste do pezinho ampliado, oferecido pelo Sistema Único de Saúde após a vigência da Lei nº 14.154, de 26 de maio de 2021. 

A mais recente conquista é a incorporação da toxoplasmose na lista das 50 doenças que devem ser analisadas por meio do teste do pezinho ampliado, oferecido pelo Sistema Único de Saúde após a vigência da Lei nº 14.154, de 26 de maio de 2021

Mas não é apenas por causa do risco de infecção em bebês e pessoas imunossuprimidas que devemos ficar atentos a essa doença. A incidência de pessoas com problemas de visão no nosso território, tanto naquelas saudáveis quanto nas que têm algum tipo de comprometimento no sistema imunológico é alta.

No Sul do país, diversos grupos de pesquisadores e médicos da região mostraram que a alta incidência de quadros oculares no Brasil tem relação com a circulação de genótipos atípicos (variantes) de Toxoplasma gondii, sendo que nenhum deles é mais dominante do que os outros. Já na Europa e América do Norte, apenas alguns genótipos desse parasito predominam e circulam entre os hospedeiros. 

O que causa problemas na visão?

Os problemas de visão ocorrem pela infecção do Toxoplasma gondii na região mais interna do olho conhecida como úvea posterior; especificamente, nos tecidos coroide e retina (figura 1). A coroide é bastante vascularizada, importante para a nutrição dos fotorreceptores localizados na parte mais externa da retina. A retina é responsável pela captação de luz que irá formar as imagens enviadas para interpretação no cérebro. Uma vez que a lesão alcança áreas da retina com maior número de fotorreceptores, como a mácula e a fóvea, o paciente pode apresentar baixa visão ou até desenvolver a cegueira.

Figura 1. A infecção pelo Toxoplasma gondii pode gerar problemas graves de visão. O parasita afeta a região mais interna do olho; especificamente, os tecidos coroide e retina

Um estudo publicado em 2022 na revista Arquivos Brasileiros de Oftalmologia mostrou que dos 408 pacientes examinados com problemas de visão no Hospital Universitário Clementina Fraga Filho, no Rio de Janeiro, 41% tinham idade entre 19 e 40 anos, 203 possuíam uveítes (inflamações na úvea) posteriores, sendo 35,40% delas causadas pela toxoplasmose.

Outro estudo publicado, em 2022, na revista internacional Clinical & Experimental Ophthalmology mostrou a importância da atenção à toxoplasmose ocular nos diagnósticos de uveítes posteriores no Sudeste do Brasil. Após avaliar mais de 3 mil pacientes, os autores relataram que, atualmente, a toxoplasmose é a principal causa de retinocoroidite (inflamação da retina e da coroide), atingindo principalmente a população em idade mais produtiva (de 19 a 40 anos), ou seja, inserida no mercado de trabalho. Essa constatação revela que o impacto da toxoplasmose ocular não se restringe apenas à qualidade de vida do paciente, inclui também perdas econômicas e sociais para o país.

O impacto da toxoplasmose ocular não se restringe apenas à qualidade de vida do paciente, inclui também perdas econômicas e sociais para o país

Água, alimentos, agulhas, órgãos

Popularmente, a toxoplasmose é conhecida como a ‘doença do gato’. De forma equivocada, acredita-se que a transmissão da doença ocorra apenas através do contato da boca com as mãos contendo restos de fezes de gatos domésticos. A infecção ocorreria durante a limpeza das caixas de areia, onde se encontram as fezes contaminadas com o Toxoplasma gondii, na forma de oocistos.

Não se pode desconsiderar as caixas de areia usadas em creches ou escolas e os canteiros e jardins visitados por felinos na calada da noite. As fezes desses animais com oocistos contaminam o ambiente, atingindo reservatórios de água, pastos e alimentos consumidos crus, como frutas e verduras.

Estudo realizado na cidade de Campos dos Goytacazes (RJ) mostrou que o consumo de água não-tratada adequadamente pode aumentar em até três vezes o risco de contrair essa infecção. As fezes de outros animais, como pombos e outros pássaros, não transmitem esse protozoário.
A OMS classifica a toxoplasmose como “doença transmitida por alimentos contaminados”, uma vez que a via oral é a principal rota de transmissão. Nesse caso, a infecção ocorre pelo consumo de água, frutas e verduras contaminadas com oocistos ou de carnes cruas ou mal passadas (sobretudo, porcos, ovinos e bovinos) também contaminadas com cistos. Esses cistos são formados durante a infecção crônica e persistem durante toda a vida do hospedeiro (o animal ou a pessoa contaminada).

Por conta da pressão do sistema imune para combater a infecção, o Toxoplasma gondii inicia o processo de ‘encistamento’ para se proteger. Durante esse processo, o parasita diminui o seu ritmo de replicação e permanece em estado ‘adormecido’ nos músculos, cérebro, coração, pulmão e outros órgãos do hospedeiro, até ter condições de retornar à fase de multiplicação rápida e continuar sua disseminação pelo organismo, ou passar para outro animal que tenha ingerido partes do seu corpo contaminado. O ciclo predador-presa entre animais de sangue quente é um dos mecanismos responsáveis por manter o T. gondii na natureza.

A transfusão de sangue, o transplante de órgãos e o compartilhamento de agulhas também são formas de transmissão dessa parasitose. Por isso, o controle de qualidade e da presença de T. gondii, principalmente em concentrado de linfócitos para determinadas transfusões, é fundamental. Esse parasito não infecta hemácias, mas pode infectar e ‘pegar carona’ em outras células do sangue.

Como o parasita entra nas células?

Após entrarem em nosso organismo, os parasitos podem colonizar diversos tecidos; em especial, o nervoso e o muscular, penetrando ativamente em qualquer tipo de célula. O Toxoplasma gondii é um parasito intracelular obrigatório, ou seja, não sobrevive muito tempo fora da proteção oferecida pelo interior da célula.

Ao penetrar nas células do hospedeiro, forma-se um vacúolo (espaço limitado por uma membrana) chamado parasitóforo (compartimento que abriga o parasito). Isso acontece pela dobra (invaginação) da membrana plasmática da célula infectada. Esse vacúolo não se funde com nenhum outro compartimento da célula, o que permite sua multiplicação em um ambiente seguro.

Após replicar algumas vezes, os parasitos ficam organizados em forma de roseta (figura 2). Ao fim de poucos dias, esse vacúolo e a membrana plasmática da célula infectada se rompem e liberam novos parasitos para fora da célula. Estes, por sua vez, vão invadir outras células, realizar novamente o ciclo de replicação e assim por diante, até que nosso sistema imune consiga controlar a infecção.

Figura 2. A microscopia eletrônica de varredura mostra a interação e o desenvolvimento do Toxoplasma gondii em diferentes células de mamíferos. Em A, o parasito adere a uma célula em cultivo. De B a F, podem ser observados aspectos da invasão da célula hospedeira. Em B, parte do parasita já não é visível e a célula hospedeira envolve o parasita progressivamente, engolfando-o. Em C, dois parasitas são internalizados por uma célula do sistema imune do hospedeiro. Em D, pode se ver parte do parasita dentro da célula hospedeira. Em E, o parasito está quase todo dentro da célula. Em F, o toxoplasma penetra uma célula em cultura.
Barras nas fotos = 1 μm.

Crédito: Márcia Attias

A transfusão de sangue, o transplante de órgãos e o compartilhamento de agulhas também são formas de transmissão

Busca por alternativas terapêuticas

Apesar de existir tratamento para a toxoplasmose, as medicações utilizadas são as mesmas descobertas na década de 1950, que têm ação apenas durante a fase aguda da doença, quando o parasito ainda não se transformou em cisto. O tratamento da toxoplasmose humana ainda conta com a combinação de dois medicamentos: sulfonamidas (sulfadiazina ou sulfametoxazol) e derivados diaminopirimidínicos (pirimetamina ou trimetoprima). Estes medicamentos em sinergia, ou seja, quando o efeito da combinação é maior do que se eles estivessem agindo sozinhos, à soma das ações de cada medicamento para inibir a síntese de folato (ácido fólico ou vitamina B9).

Para evitar que apareçam efeitos adversos decorrentes do bloqueio da produção de folato, recomenda-se que o paciente tome suplementos de ácido folínico. Entre os efeitos adversos, estão a anemia megaloblástica (quando a medula óssea produz hemácias maiores que o normal e há diminuição do tamanho dos glóbulos brancos e das plaquetas), reações de hipersensibilidade às sulfonamidas e necrose hepática. Por causa disso e do tratamento ser longo, ao menos 30% das pessoas deixam de se tratar. Os pacientes imunocompetentes (cujo sistema imune funciona normalmente) e que não apresentam sintomas não são indicados para o tratamento.

Ao longo do tempo, outros medicamentos já existentes, como azitromicina, clindamicina e atovaquona, foram sendo utilizados como alternativa para o tratamento de toxoplasmose encefálica em pacientes HIV positivos. Porém, esses antibióticos – combinados ou não com a pirimetamina – não demonstraram efeito maior e/ou melhor que a combinação de sulfadiazina-pirimetamina. Entretanto, são mais bem tolerados por esses pacientes, dependendo de seu estado de saúde.

Em mulheres grávidas, a espiramicina é o único medicamento que pode ser recomendado, por causa da segurança do feto. O acompanhamento pré-natal é essencial para que seja possível iniciar o tratamento antes de que o parasito consiga ultrapassar a placenta.

O acompanhamento pré-natal é essencial para que seja possível iniciar o tratamento antes de que o parasito consiga ultrapassar a placenta

Nos casos de toxoplasmose ocular, é necessário adicionar anti-inflamatórios, como dexametasona ou prednisona, além do tratamento padrão. Essa recomendação tem como objetivo diminuir a inflamação que atinge os olhos, para evitar que haja destruição da retina. Em pacientes intolerantes a algum dos medicamentos do tratamento padrão ou que não respondem a esses remédios, uma alternativa que tem sido utilizada pelos oftalmologistas é a injeção intravítrea de clindamicina, combinada com dexametasona.

A injeção intravítrea é o método de administração do fármaco no interior do olho, na cavidade vítrea. A clindamicina é um antibiótico utilizado no tratamento de várias infecções bacterianas, com efeito comprovado de impedir a replicação do Toxoplasma gondii nos testes com células infectadas com este protozoário. Porém, o efeito dessa injeção para tratar a toxoplasmose ocular ainda é controverso nos trabalhos científicos.

A pesquisa mundial na área de tratamento experimental para a toxoplasmose está voltada para testes de seleção de novas moléculas e para a identificação molecular de alvos terapêuticos, utilizando culturas de células de mamíferos infectadas com T. gondii. Os estudos nessa área precisam avançar rapidamente, com a indicação de novas alternativas terapêuticas, sobretudo de moléculas com potencial de impedir a replicação da forma do parasito responsável pela formação dos cistos.

Uma das estratégias que tem sido utilizada para acelerar o desenvolvimento de fármacos para combater a toxoplasmose é o reposicionamento de medicamentos já liberados no mercado farmacêutico para outras enfermidades, caso eles mostrem atividade contra a replicação do Toxoplasma gondii.

Uma das estratégias que tem sido utilizada para acelerar o desenvolvimento de fármacos para combater a toxoplasmose é o reposicionamento de medicamentos já liberados no mercado farmacêutico para outras enfermidades, caso eles mostrem atividade contra a replicação do Toxoplasma gondii

Nos últimos anos, nosso grupo de pesquisa na UFRJ vem seguindo essa estratégia e tem alcançado resultados muito promissores com antibacterianos e medicamentos da classe dos ácidos hidroxâmicos, os quais apresentam baixa toxicidade celular, além de ter ação comprovada em doenças de causa bacteriana e câncer, respectivamente.

Nesse projeto, conseguimos avançar no entendimento sobre a capacidade desses compostos impedirem a proliferação do parasito em células e em camundongos infectados com o parasito. Realizamos testes com cepas (variantes) com diferentes níveis de potencial de infecção, os quais afetam a população humana. Mostramos que derivados de ciprofloxacino aumentam a sobrevivência de camundongos infectados com cepa virulenta de T. gondii, ao interrompermos a replicação do parasita. Em outro artigo, revelamos que inibidores de enzimas da família das histonas acetiltransferases têm atividade seletiva contra o T. gondii em concentrações sem toxicidade para nossas células.

Esses resultados serviram de embasamento para o início de testes em animais da toxoplasmose aguda, crônica e ocular, já estabelecidos em nosso laboratório. Além disso, prosseguiremos os ensaios, respondendo se esses compostos produzem efeito neuroprotetor em camundongos infectados, já que a toxoplasmose atinge o sistema nervoso central.

Toxoplasmose e Toxoplasma gondii. organizado por Wanderley de Souza e Rubens Belfort Jr. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2014.

Formas brasileiras de Toxoplasmose. https://revistapesquisa.fapesp.br/formas-brasileiras-de-toxoplasmose/

Animação feita em parceria com a USP auxilia no entendimento da toxoplasmose. https://jornal.usp.br/ciencias/animacao-feita-em-parceria-com-a-usp-auxilia-no-entendimento-da-toxoplasmose/

Parasita da Toxoplasmose causa lesão típica e se espalha pela retina. https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-da-saude/parasita-da-toxoplasmose-causa-lesao-tipica-e-se-espalha-pela-retina/

Hábitos antigos de criação podem ocasionar a toxoplasmose. https://jornal.usp.br/atualidades/habitos-antigos-de-criacao-podem-ocasionar-a-toxoplasmose/

Toxoplasmose é uma doença silenciosa. https://jornal.usp.br/radio-usp/radioagencia-usp/toxoplasmose-e-uma-doenca-silenciosa/  

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