A composição da dieta é preocupação nacional na maioria das sociedades modernas. De várias maneiras, a chamada carne vermelha (de boi, porco, carneiro etc.) está se tornando um dos centros dessa preocupação. A ‘carnivoria’ moderna é celebrada nos balcões de supermercados, com suas inúmeras e intrincadas divisões, nas páginas de livros de culinária e em programas de televisão, onde o manuseio, a preparação e a estética da carne são elevados à categoria de formas de arte. A carne vermelha está disponível como o onipresente hambúrguer de fast food em quase todos os países do mundo e, na sua forma mais exclusiva, como um bife da carne de Kobe (obtido de novilhas regularmente massageadas e alimentadas com cerveja), vendido por mais de 500 reais o quilo.
Nosso apetite moderno por carne vermelha é uma manifestação extrema de nosso passado evolutivo, quando a introdução de carne vermelha na dieta dos hominídeos foi provavelmente um evento seminal. Por mais de um século, muitos antropólogos enfatizaram o consumo de carne como catalisador da evolução humana, por favorecer aspectos como capacidade reprodutiva, fabricação de ferramentas, expansão neural, cooperação e maior longevidade.
A carne vermelha é uma fonte concentrada de nutrientes que pode fornecer uma porção significativa da ingestão diária recomendada de proteínas, niacina, vitaminas B6 e B12, fósforo, zinco, ferro, riboflavina, ácido pantotênico e selênio. Por essa razão, o consumo dessa carne é especialmente recomendado para gestantes e crianças em desenvolvimento. Porém, o consumo de carnes vermelhas e, em especial, das processadas (bacon, salsichas, salames, entre outros) vem sendo consistentemente associado ao aumento do risco de doenças em humanos.
Um estudo epidemiológico prospectivo que acompanhou cerca de 100 mil profissionais da área da saúde demonstrou que a ingestão média de 200 gramas diárias de carne vermelha está relacionada com uma maior mortalidade por doenças cardiovasculares, diabetes do tipo 2 e, principalmente, câncer de cólon. As razões parecem ser complexas e os pesquisadores têm trabalhado para entender os fatores envolvidos.
Existem muitas explicações propostas para essas associações, algumas discutidas há muitos anos. Entre elas estão incluídas: (i) o alto conteúdo de gordura saturada e seu envolvimento na obesidade, inflamação geral, resistência à insulina e desequilíbrio da flora intestinal (disbiose); (ii) o alto conteúdo de sal e sua contribuição para o aumento da pressão arterial e, secundariamente, para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares e renais; (iii) geração de trimetilamina-N-óxido (TMAO) pelo metabolismo de colina ou L-carnitina da carne por bactérias da microbiota, uma vez que níveis elevados de TMAO no plasma podem promover aterosclerose.
Contudo, nenhum dos mecanismos mencionados acima é específico para carne vermelha – o que é fundamental se considerarmos o fato de que o consumo de carnes brancas, como aves e peixes, que constituem as outras principais fontes de proteína animal na dieta humana, não está associado ao risco de doenças. Mesmo os carcinógenos aromáticos policíclicos gerados por métodos de cozimento a altas temperaturas (como na churrasqueira), não são específicos para carne vermelha, pois também são gerados ao cozinhar aves ou peixes, bem como por outras formas de cozimento.
As explicações tradicionais que parecem ser mais específicas para a carne vermelha incluem: (i) o impacto dos compostos N-nitrosos (presentes na carne vermelha devido à adição de sais conservantes ou por formação endógena catalisada por hemoglobina), agentes cancerígenos que podem causar dano ao DNA e contribuir para uma ampla gama de malignidades; (ii) as propriedades oxidativas, citotóxicas e potencialmente prejudiciais ao DNA do pigmento heme, que confere o aspecto peculiar da carne vermelha. Uma discussão mais detalhada sobre as razões pelas quais os mecanismos até aqui mencionados não fornecerem explicações conclusivas para o risco de doenças associados ao consumo de carne vermelha pode ser encontrado em uma revisão publicada na revista Molecular.
Um novo mecanismo imunológico que envolve a participação de carboidratos encontrados na carne vermelha, mas não no organismo humano, tem emergido como importante vínculo entre o consumo desse tipo de carne e o risco de doenças. O composto suspeito é um carboidrato (um tipo de molécula de açúcar) chamado ácido N-glicolilneuramínico (Neu5Gc). O Neu5Gc não é naturalmente encontrado em tecidos humanos devido a uma mutação que ocorreu há cerca de dois a três milhões de anos. Porém, a ingestão de produtos contendo Neu5Gc (especialmente, carne vermelha) faz com que ele seja absorvido em diversos tecidos humanos, sobretudo em células endoteliais e epiteliais.
As células que absorvem o Neu5Gc o expõem em sua superfície, o que as torna alvo de anticorpos circulantes anti-Neu5Gc, presentes em todos os humanos estudados até hoje. Esse é o único exemplo conhecido em que uma molécula da dieta pode se tornar um autoantígeno. A deposição de anticorpos anti-Neu5Gc nas células que absorveram Neu5Gc leva a uma resposta inflamatória. Isso pode ser umas das explicações para o fato de que dietas ricas em carne vermelha estão associadas a uma inflamação crônica (xenosialite) e a doenças relacionadas, como câncer de cólon e aterosclerose.
Uma vez que o Brasil está entre os maiores consumidores de carne vermelha do mundo (3° lugar, atrás apenas do Uruguai e da Argentina), torna-se necessário fazer estudos que visem estabelecer se esse mecanismo inflamatório é um fator que contribui para a alta incidência de câncer de cólon, com estimativa de 17.380 novos casos em homens e 18.980 em mulheres para cada ano do biênio 2018-2019. Pesquisas em andamento na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) têm se concentrado nessa hipótese.
Por ser um mecanismo imunológico com potencial patogênico, ao qual a maioria da população brasileira está exposta, há a possibilidade de que a xenosialite contribua para o agravamento de sintomas reumatológicos apresentados por pacientes de zika e chikungunya – pouco se sabe sobre os mecanismos moleculares envolvidos nos processos inflamatórios que ocorrem nessas doenças. Um grupo multidisciplinar de virologistas, imunologistas, e reumatologistas da UFRJ também tem estudado tal hipótese.
Já se sabe há algum tempo que hábitos alimentares também podem modificar os trilhões de microrganismos que vivem no intestino (conhecidos coletivamente como microbiota intestinal) e contribuir para a obesidade, diabetes e câncer. Uma parceria do Departamento de Imunologia do Instituto de Microbiologia da UFRJ com a Universidade da Califórnia, em San Diego (UCSD), nos EUA, propôs estudar se a ingestão do carboidrato Neu5Gc da carne vermelha poderia provocar alterações na microbiota intestinal. Descobriu-se que algumas bactérias intestinais têm enzimas capazes de retirar o Neu5Gc das proteínas da carne para utilizá-lo como nutriente.
O estudo, publicado em setembro de 2019 na revista Nature Microbiology, apresenta a possibilidade de usar essas enzimas bacterianas, chamadas sialidases, para limpar o Neu5Gc de nossos tecidos ou remover potencialmente o carboidrato da carne vermelha antes de ser consumida. Karsten Zengler, pesquisador da Universidade da California e autor sênior do estudo, disse esperar que essa abordagem possa ser usada como uma espécie de probiótico (produtos com bactérias saudáveis) ou prebiótico (produto que serve de alimento para as bactérias da microbiota) para ajudar a reduzir a inflamação e o risco de doenças inflamatórias – sem abrir mão do bife.
Os cientistas sabem há décadas que o câncer de cólon e a aterosclerose são mais comuns em pessoas que comem muita carne vermelha, mas não em carnívoros não humanos. O Neu5Gc foi implicado como o elo entre o consumo de carne vermelha e essas doenças humanas em estudos anteriores publicados pelo mesmo grupo de pesquisas da UCSD. Eles mostraram que o Neu5Gc na dieta promove inflamação, tumores e aterosclerose em camundongos deficientes em Neu5Gc (semelhantes a humanos).
Neste último estudo, os pesquisadores utilizaram camundongos similares a humanos para determinar como a dieta influencia a composição da microbiota intestinal – comunidades de microrganismos, particularmente bactérias, que vivem no intestino. Os camundongos foram alimentados com uma dieta rica em Neu5Gc ou com uma dieta controle sem esses carboidratos.
No geral, a dieta rica em Neu5Gc foi associada a menor diversidade bacteriana nos microbiomas do intestino de camundongo. Mas havia vários tipos de bactérias que eram mais abundantes nos intestinos dos camundongos alimentados com Neu5Gc do que os que não consomem o carboidrato relacionado à carne. Um deles eram os bacteroides, um tipo de bactéria conhecida por sua capacidade em metabolizar carboidratos. Uma enzima específica dos bacteroides foi especialmente abundante nos camundongos alimentados com Neu5Gc – um novo tipo de sialidase que ‘corta’ o Neu5Gc.
Para determinar como os resultados dos camundongos podem se traduzir em seres humanos, os pesquisadores originalmente pensaram em realizar um estudo em que as pessoas fizessem dieta vegetariana por dois meses e, depois, comessem carne por outros dois meses. Assim, seria possível acompanhar se havia mudança na presença dessas sialidases nos microbiomas intestinais. Em vez de lançar um novo estudo caro, os cientistas encontraram um experimento natural no estilo de vida do hadzas, um grupo indígena de caçadores de uma região remota da Tanzânia, na África Oriental. Na estação seca, os hadzas caçam e comem carne. Já na estação chuvosa, eles não conseguem caçar e comem, sobretudo, frutas e mel.
Outros grupos de pesquisa estudam há muito o hadzas e seus microbiomas. Olhando para os dados genômicos publicamente disponíveis das bactérias do intestino dos hadzas ao longo do tempo, viu-se que os bacteroides contendo o gene da sialidase eram pelo menos duas vezes mais abundantes durante a estação seca (quando eles comem carne) do que na estação chuvosa.
Só porque os genes da sialidase estão presentes, isso não significa necessariamente que eles estão ativos. Assim, os pesquisadores sintetizaram o gene da sialidase bacteriana dos hadzas e produziram a enzima no laboratório. De fato, a sialidase era ativa e preferia Neu5Gc ao carboidrato semelhante encontrado nos humanos, o Neu5Ac.
Foi quando os cientistas levaram as coisas um passo adiante. Sua equipe comprou linguiça de porco e carne de boi em um mercado local e as levaram ao laboratório. Eles ‘trataram’ as carnes com as sialidases feitas em laboratório e, para felicidade dos pesquisadores, a maior parte do Neu5Gc da carne foi eliminada imediatamente. Como pesquisador diretamente envolvido, posso afirmar que a abordagem ainda não é perfeita – as novas sialidases preferem remover o Neu5Gc, mas ainda removem um pouco da forma do açúcar humano semelhante.
Agora os pesquisadores estão trabalhando para otimizar a enzima de modo a aumentar sua especificidade para Neu5Gc. A equipe também quer desenvolver métodos para produzir em massa essas enzimas e explorar ainda mais seu potencial como biocomposto capaz de reduzir o risco de doenças inflamatórias em indivíduos que consomem grandes quantidades de carne vermelha.
Por último, é importante ressaltar que a recomendação da Organização Mundial de Pesquisa em Câncer (World Cancer Research Fund) é que o consumo de carnes vermelhas e carnes vermelhas processadas não exceda o limite de 300 a 500 gramas por semana como forma de prevenir o câncer de cólon.
Frederico Alisson da Silva
Instituto de Microbiologia Paulo de Góes
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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