Nunca esquecerei minhas viagens a Teresópolis para ver o céu estrelado. A liberdade para explorar o pequeno sítio do meu padrasto era indescritível. Eu investigava cada canto da floresta. Um dia me deparei com um lagarto e saí em disparada, gritando que tinha encontrada a mãe da mãe de todas as lagartixas. Na minha mente, mães serem maiores do que os filhos explicava perfeitamente a linhagem histórica desde os dinossauros até os répteis modernos.
Minha mãe é uma mulher extraordinária. Órfã desde os 11 anos, ela começou a estudar arquitetura aos 21 anos de idade, grávida de mim. Quando eu estava com seis anos, fomos morar em Ipanema, bairro da zona sul do Rio de Janeiro, mesmo sem condições financeiras adequadas. Minha mãe acreditava que eu precisava crescer num ambiente diverso e tolerante. Ela visitou diversas escolas privadas da região para implorar por uma bolsa parcial. Aluguel, comida e a escola consumiam a totalidade do nosso orçamento. Vivíamos no limite do estresse, porque qualquer imprevisto poderia anular nossos sonhos do dia para a noite.
A extenuante carga de trabalho da minha mãe me forçou a ser independente. Aprendi a lidar com a solidão e pude também explorar seu guarda-roupa livremente. Essa independência forçada me impediu de aceitar, posteriormente, ingerência em questões envolvendo tanto minha trajetória acadêmica quanto minha identidade de gênero. Hoje enxergo que poderia ter sido mais feliz se tivesse aberto meu coração mais cedo para quem me ama. Quando me transferi para o Colégio Pedro II, ganhei ainda mais independência. Estudava à noite e raramente jantava em família. Retornava sozinha da escola, às onze da noite, de ônibus, uma liberdade que oxigenava a minha alma. De vez em quando reflito quanto tempo eu duraria numa escola cívico-militar sem surtar com o excesso de disciplina. Num sistema militarizado, eu não teria completado o ensino médio.
Não expressar minha transexualidade sempre foi uma fonte de frustração, mas não via a possibilidade de ser cientista e travesti ao mesmo tempo, e os dois sonhos eram igualmente importantes. Racionalizei erroneamente que talvez conseguisse ser travesti se já fosse uma cientista famosa, mas nunca o contrário. Não tinha com quem conversar sobre assunto. Às vezes, pagava programas para me consultar com as travestis de Copacabana com o dinheiro que arrecadava dando aulas particulares. Nem elas acreditavam que era possível ser cientista travesti. Ao ganhar meu primeiro computador, pesquisei o assunto na internet. Pornografia e violência eram as únicas informações disponíveis, com uma exceção: o site Casa da Maitê, da querida Maitê Schneider, consultora de inclusão, diversidade e humanização.
O grupo de pesquisa em cosmologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) me proporcionou liberdade plena, mas institucionalmente a graduação limitava ao máximo nossa autodeterminação, como se existisse uma única forma correta de se formar em física.
Minha ida para os Estados Unidos em 2010 mudou minha vida. A Universidade de Chicago era radicalmente diferente. Não tive condições de iniciar minha transição de gênero na cidade do Jazz, dada a exaustão intelectual que a universidade, com o lema “where fun comes to die” (“onde a diversão vem para morrer”, em livre tradução), me submeteu. Uma fatalidade que não reflete o clima de abertura e tolerância existente no maravilhoso campus em Hyde Park. Minha graduação foi em 2015. Ganhei dois importantes prêmios – Nathan Sugarman Award e Schramm Fellowship – e fui contratada para fazer meu primeiro pós-doutorado na Universidade da Pensilvânia.
Instalada na Filadélfia, conheci três mulheres maravilhosas, cujo suporte foi crítico para assumir a minha identidade de gênero: Patricia Guerovich, Elizabeth Coffey Williams e Kendall Stephens, da ONG William Way LGBT Center, que patrocinava um encontro semanal com a comunidade transexual. Aprendi muito com esse grupo magnífico de homens, mulheres e não binários. Existem muitos caminhos possíveis na busca pela própria identidade, e a troca de experiência é condição necessária para aprendermos a navegar num mundo onde a maioria das pessoas não emprega, não compreende e não respeita pessoas transexuais. O departamento de física me forneceu muito apoio e suporte. A universidade pagou inclusive a maior parte das despesas hospitalares relativas ao meu tratamento de transição de gênero no departamento de endocrinologia.
Considero a mudança para a Universidade do Arizona, para iniciar meu segundo pós-doutorado, uma grande vitória. Foi o meu primeiro emprego em que as pessoas sabiam que eu era uma mulher transexual desde o primeiro dia. Meu nome social foi respeitado em todas as instâncias da universidade. Em 2019, ganhei mais um prêmio, o Leona Woods Lectureship Award, e ministrei palestras sobre a minha pesquisa sobre energia escura em diversas universidades americanas e europeias sem qualquer problema, incluindo a Universidade de Chicago. A visão difundida por quem, temporariamente, exerce o poder na esfera federal do nosso país de que o respeito à identidade de gênero é uma anomalia do sistema público de universidades federais é falsa. Tenho profunda tristeza ao ver ex-alunos da Universidade de Chicago dando apoio tático, intelectual e material a esse clima de intolerância. Eles não representam a universidade que valoriza o talento vindo de todos os lugares, etnias, crenças, orientações sexuais e identidades de gênero. Viva a diversidade!
Vivian Miranda
Departamento de Astronomia
Universidade do Arizona
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