Um ‘Einstein’ gigantesco nos pampas

Eles são fragmentos de matéria bilhões de vezes menores que um grão de poeira, mas podem carregar energias macroscópicas, equivalentes àquela de um tijolo arremessado à mão, com toda força, contra um muro, por exemplo. Penetram a atmosfera terrestre, vindos de todas as direções do espaço, e, ao se chocarem com átomos que formam o ar, desencadeiam uma ’chuveirada’ que pode conter bilhões de partículas. Parte desses estilhaços subatômicos chega ao solo e penetra o corpo humano à razão de dezenas a cada segundo.

Esses viajantes espaciais são os raios cósmicos, as partículas mais energéticas das quais a ciência tem conhecimento. De onde eles vêm? Que mecanismos de aceleração imprimem tamanha energia a eles? Essas são apenas duas das muitas questões ‐ ainda sem resposta ‐ que tornam a pesquisa em raios cósmicos uma das mais instigantes da atualidade.

Neste artigo, o leitor ainda terá a chance de saber como as idéias lançadas a exatos 100 anos por Einstein ajudam a desvendar a origem e as propriedades dessas misteriosas partículas ultra-energéticas.

Foto de um dos tanques detectores de raios cósmicos instalados no Observatório Auger, na Argentina.

A viagem ao Observatório Pierre Auger é longa. Do Rio de Janeiro, toma-se um avião para Buenos Aires ‐ ou a Santiago do Chile ‐ e outro até Mendoza, na Argentina. A sede do observatório fica em Malargüe, cidade no planalto pré-andino, a cerca de 400 km ao sul de Mendoza. Para chegar lá, carro ou ônibus ‐ e carretas pesadas, quando se trata de carregar equipamentos. É uma viagem bonita, em estradas sem muito movimento, acompanhando a cordilheira dos Andes, com vistas espetaculares ‐ em particular, a do vulcão Tupangato.

Malargüe é uma corruptela do nome Malal-Hué , termo que significa ‘curral de pedra’ na língua mapuche, falada pelos povos indígenas que habitam a região. Ao todo, pelo menos 15 horas de viagem. Os 80 km finais da estrada vão costeando a região onde estão sendo instalados os detectores do observatório ‐ 3 mil km 2 de área instrumentada, equivalentes a três vezes a do município do Rio de Janeiro. Nos últimos seis anos, tivemos duas reuniões por ano para discutir a evolução do projeto, analisar os dados produzidos e definir as estratégicas para levantar recursos para completar o observatório. Reuniões com cientistas vindos de toda parte, enfrentando a longa viagem.
Já se vão quase nove anos desde que começamos esse projeto. A colaboração Pierre Auger foi formada em uma reunião realizada na sede da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), em Paris, em novembro de 1995. Nós, pesquisadores brasileiros, juntamo-nos a colegas argentinos nessa reunião para defender a proposta de construir a sede sul do futuro observatório na Argentina. Concorríamos com os sul-africanos, que traziam uma carta de apelo do então presidente Nelson Mandela para que fosse escolhida, como sede do observatório, uma região no oeste da África do Sul, perto da fronteira com a Namíbia. Os argentinos traziam também uma carta de seu então presidente ‐ nome, hoje, que preferem esquecer.
A outra proposta foi feita pelos australianos, oferecendo uma área que era uma reserva militar, usada como campo de treinamento para bombardeiros. Evidentemente, a hipótese de que teríamos, de tempos em tempos, bombas explodindo perto de nossos detectores eliminou imediatamente esse candidato. Era também o lugar mais longínquo para a maioria dos delegados reunidos em Paris.
O argumento decisivo para a escolha da Argentina como sede do observatório sul foi a existência de uma comunidade de físicos bastante grande na Argentina e no Brasil. A decisão sobre a sede do observatório norte, nos Estados Unidos, foi tomada em outra reunião, seis meses depois.
Mais energéticos do universo
Desvendar um dos grandes mistérios da física atual é a motivação da equipe de cerca de 250 físicos, de dezenas de nacionalidades, que está construindo o observatório. O mistério é a natureza dos raios cósmicos, com as energias mais altas que qualquer outro objeto encontrado no universo.
Raios cósmicos são bastante ubíquos ‐ ou seja, vêm de todas as direções do espaço ‐, atravessando nossos corpos o tempo todo, sem nos darmos conta disso. São parte da radiação natural do meio ambiente. Milhares deles atravessam qualquer metro quadrado da superfície da Terra a cada segundo. Mesmo dentro de edifícios, eles estão presentes. Quando algum experimento científico necessita ser realizado em um ambiente com pouquíssimos raios cósmicos, tem-se que buscar cavernas ou túneis muito profundos, de maneira que o material acima os absorva.
Os raios cósmicos que irradiam a Terra têm energias muito variadas. Porém, quanto maior a energia, mais raros são. Para cada fator 10 no aumento de energia, o fluxo de raios cósmicos ‐ ou seja, o número deles por metro quadrado ‐ cai por um fator de quase mil. Os de energia mais alta já registrados por sensores na Terra têm um fluxo de cerca de um raio por ano em uma área de mil km 2 . Portanto, para poder capturá-los, ou temos sensores espalhados por muitos quilômetros quadrados, ou dedicamos centenas de anos ao trabalho! Obviamente, optou-se pela primeira solução.

Os raios cósmicos de mais alta energia são geralmente denominados ultraenergéticos. Se apenas um micrograma desse tipo de matéria atingisse a Terra, o choque seria equivalente ao de um asteróide com a massa do monte Everest ‐ o mais alto pico do mundo ‐ viajando a 200 mil km/h. A energia carregada por um ultraenergético chega a ser macroscópica, ou seja, equivalente àquela a que estamos acostumados no dia-a-dia. E isso impressiona pelo fato de o fragmento que carrega essa energia ser bilhões de vezes menor que um grão de pó.

Ronald Cintra Shellard
Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (RJ) e
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

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