Instrumentos em pedra lascada: em cima, quatro raspadores em forma de quilha de barco e uma ponta de dardo; em baixo, duas facas e dois talhadores.

A representação de como teriam vivido os primeiros habitantes do cerrado brasileiro, quinhentas gerações atrás, ainda costuma ser marcada por modelos desenvolvidos em áreas frias da América do Norte e da Europa. Pesquisas arqueológicas em desenvolvimento nas áreas tropicais do Brasil vêm, lentamente, esboçando um panorama diferente, que procuramos apresentar neste artigo.

O Velho Mundo estava povoado quando os primeiros seres humanos pisaram na América. A fronteira se abriu para o isolado continente americano quando o gênero humano tinha evoluído física e psiquicamente, e a espécie Homo sapiens era seu único representante.

Havia só uma travessia para chegar à América, pelo norte, passando da Sibéria para o Alasca, mas essa passagem estava atravancada por gelos, tanto no lado asiático, quanto no americano. Mesmo assim, foi por ali que o ser humano atravessou de um continente para outro. Se a passagem se deu por um corredor livre de glaciação na terra, ou através da navegação em pequenos botes ao longo da costa, é uma questão ainda controversa para os cientistas. O período em que teria ocorrido essa transposição – há 50 mil, 30 mil ou 15 mil anos – ocupa a mente não só de arqueólogos, como também de geneticistas, lingüistas e físicos.
Na época, a população mundial ainda era pouco densa e vivia dos recursos naturalmente disponíveis no reino animal, vegetal e mineral; não existia civilização com cidades, estados e classes sociais, nem aldeias baseadas no cultivo de plantas e animais domésticos.

A população migrante passa a ser mais claramente percebida nas terras altas do Brasil a partir de 12 mil anos atrás, quando a última grande glaciação estava terminando, o clima se tornava mais ameno e úmido e a vegetação se adensava, oferecendo novos recursos.

Aparência diversa
Segundo antropólogos físicos, esses humanos, mesmo sendo todos da espécie Homo sapiens, não teriam aparência física uniforme. Os mais antigos, anteriores a 8 mil anos, podem ter tido feições ‘negróides’, ou negróide-australóides, como a Luzia, encontrada na região de Lagoa Santa (MG), que teria existido entre 11 mil e 11,5 mil anos atrás. As populações posteriores a 8 mil anos atrás, incluindo todos os índios conhecidos no continente, têm feições reconhecidamente mongolóides. Para colocá-las em uma ou outra categoria, estudam-se características biológicas, hereditárias, marcadas nos ossos do esqueleto, especialmente da cabeça, onde a forma dos dentes é um traço muito importante para distinguir, por exemplo, populações mongolóides. A partir dos ossos também é possível modelar as feições externas, como foi feito com a Luzia, em um laboratório especializado do Primeiro Mundo, obtendo-se uma visualização de como teria sido o indivíduo quando vivo.

Ao supormos que os primeiros povoadores tinham feições negróides, não estamos afirmando que eles tenham vindo da África, do sul da Ásia, ou da Oceania, onde as populações negróides predominavam, e que só os povoadores posteriores tenham vindo do leste da Ásia, hoje predominantemente mongolóide. Todos teriam vindo do continente asiático, pela região do Bering, já biologicamente diferenciados em negróides e mongolóides antes da migração, ou os primeiros humanos teriam chegado à América quando as feições negróides e mongolóides ainda não estavam plenamente definidas, completando-se aqui o processo de caracterização.

Pedro Ignácio Schmitz*
Instituto Anchietano de Pesquisas (diretor),
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)/RS

* Colaborou na elaboração do texto o arqueólogo Fúlvio Vinícius Arnt, do Instituto Anchietano de Pesquisas/Unisinos