Dengue: em busca de uma proteção mais eficaz

Laboratório de Biotecnologia e Fisiologia de Infecções Virais
Instituto Oswaldo Cruz - Fiocruz

Problema de saúde pública no Brasil hoje, a dengue já registrou mais de 3 milhões de casos em 2024 no país, com mais de 1.200 mortes decorrentes da infecção. Por isso, novas estratégias vacinais são bem-vindas para auxiliar no combate a essa doença infecciosa que evolui para formas graves e aflige nossa população quase todos os verões.

CRÉDITO: FOTO PAULO PINTO/AGÊNCIA BRASIL

A dengue é um problema sério de saúde pública no Brasil e em diversos países tropicais e subtropicais no mundo. A doença é causada pelo vírus da dengue (DENV), que é transmitido aos humanos pela picada de mosquitos, principalmente o Aedes aegypti

Estima-se que metade da população mundial viva em áreas de risco de infecção, com, pelo menos, um dos quatro tipos diferentes de DENV (sorotipos 1, 2, 3 e 4). Esta diferença se baseia nos anticorpos que são produzidos quando uma pessoa se infecta com um DENV, o que chamamos de diferenças antigênicas. 

A doença é caracterizada por vários sintomas, incluindo febre alta, geralmente acompanhada de dores de cabeça, nos olhos, nas articulações e musculares. Esses sintomas duram poucos dias, após os quais a maioria dos indivíduos se recupera. Entretanto, algumas pessoas podem desenvolver quadros mais graves, conhecidos como a febre hemorrágica da dengue e síndrome do choque da dengue, que podem levá-las à morte. 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica os vários quadros da doença como: dengue sem ou com sinais de alerta e dengue grave. Os sinais de alerta incluem, por exemplo, dores abdominais, vômitos persistentes, aumento do volume do fígado e dos níveis das enzimas hepáticas, e os indivíduos com esses sintomas devem ser acompanhados mais de perto, pois podem desenvolver a dengue grave (figura 1).

Figura 1. Mapa da dengue nas Américas e no Brasil

CRÉDITOS: ADAPTADO DE GRÁFICO DA ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE [GRÁFICO 1] SINAN WINDOWS/NET/ON-LINE/ ESUS-VS (DADOS DE 2024 ATÉ A SEMANA 26, ATUALIZADOS EM 1/7/24) [GRÁFICO 2]

Processo de infecção

A estrutura do DENV está esquematizada na figura 2. A partícula viral é recoberta por uma membrana denominada envelope, onde ficam inseridas várias cópias das proteínas de membrana (M) e do envelope (E). Abaixo desse envelope, várias proteínas do capsídeo (C) se organizam como uma cápsula e, no seu interior, se encontra o material genético do vírus, que é uma molécula de RNA.

Figura 2. Esquema do vírus da dengue e de seu processo de replicação dentro das células

CRÉDITO: ADAPTADO DE SOUZA ET AL. BMC BIOINFORMATICS (2022) Doi.org E DE LAUGHLIN ET AL. J. INFECT. DIS. 2012, 206: 1121 (ncbi.nlm.nih.gov)

Para que o vírus penetre as células e novas cópias dele sejam produzidas, é necessário que ele interaja com estruturas presentes na membrana das nossas células, chamadas receptores. Essa ligação vírus-célula ocorre, principalmente, através da proteína E, fazendo com que o vírus seja englobado em vesículas no interior das células. 

Posteriormente, o RNA do vírus é liberado e são feitas várias cópias das proteínas M, E e C (que, por fazerem parte da partícula viral, são chamadas estruturais) e também de sete outras proteínas chamadas não estruturais. Além dessas proteínas, são sintetizadas várias cópias do RNA do DENV que, junto com as novas proteínas estruturais, vão compor as próximas partículas virais. 

As proteínas não estruturais são importantíssimas para que sejam produzidas as novas partículas virais, que, por sua vez, vão infectar novas células e assim dão continuidade ao processo de infecção. Além disso, as proteínas não estruturais também atuam regulando a resposta imune do indivíduo infectado.

Após a infecção com um determinado sorotipo de DENV (1, 2, 3 ou 4), a pessoa fica protegida contra infecções futuras com o mesmo sorotipo viral. Contudo, uma segunda infecção com um sorotipo diferente de DENV aumenta a probabilidade de a pessoa desenvolver a dengue grave.

Após a infecção com um determinado sorotipo de DENV (1, 2, 3 ou 4), a pessoa fica protegida contra infecções futuras com o mesmo sorotipo viral. Contudo, uma segunda infecção com um sorotipo diferente de DENV aumenta a probabilidade de a pessoa desenvolver a dengue grave

Existem algumas teorias para explicar esse fato. Uma delas é o aumento da replicação do vírus dependente de anticorpos (conhecido como ADE – do inglês, antibody dependent enhacement). Após a infecção, os indivíduos produzem anticorpos que se ligam às proteínas do vírus. Alguns desses anticorpos são capazes de impedir a entrada do vírus nas células, evitando que mais vírus sejam produzidos. 

Esses anticorpos são denominados neutralizantes e se ligam principalmente à proteína E do vírus, impedindo que essa proteína interaja com os receptores das células. Entretanto, os anticorpos também podem ter um efeito oposto, atuando para o agravamento da doença.

Nesse caso, os anticorpos produzidos na primeira infecção se ligam às proteínas do vírus da segunda infecção, mas não têm a capacidade de neutralizar esses vírus, caso ele seja de outro sorotipo. Ao contrário, esses anticorpos interagem com a célula e facilitam a entrada dos vírus. Consequentemente, são feitas mais cópias do vírus, levando ao agravamento da doença.

Outras teorias, não necessariamente excludentes, também explicam por que as infecções de um sorotipo de DENV seguida de outro podem levar aos quadros mais graves da dengue. 

De um modo geral, o que se observa nos casos graves da doença é que os indivíduos ativam uma resposta imune descontrolada contra o sorotipo para o qual não estão protegidos. Por isso, uma vacina contra a dengue deve proteger contra os quatro sorotipos de DENV. Caso contrário, se depois de vacinada a pessoa se infectar com o sorotipo para o qual ela não está protegida, a resposta imune induzida com a vacina pode facilitar a infecção com esse vírus e levar ao desenvolvimento de uma dengue mais grave.

De um modo geral, o que se observa nos casos graves da doença é que os indivíduos ativam uma resposta imune descontrolada contra o sorotipo para o qual não estão protegidos. Por isso, uma vacina contra a dengue deve proteger contra os quatro sorotipos de DENV

Vacinas disponíveis

Atualmente, existem duas vacinas disponíveis contra a dengue. A primeira vacina licenciada no mundo foi a Dengvaxia, produzida pela farmacêutica Sanofi Pasteur, que utiliza o vírus da vacina contra a febre amarela. Essa vacina é produzida com o próprio vírus da febre amarela que sofreu mutações e não causa mais a doença, mas ativa uma resposta imune protetora nos humanos, sendo, por isso, chamada de vacina viva atenuada. 

O material genético do vírus da febre amarela é bastante semelhante ao do DENV. Para o desenvolvimento da Dengvaxia, os cientistas modificaram o vírus vacinal da febre amarela, trocando os genes das proteínas M e E da febre amarela pelos genes das proteínas do DENV. Eles construíram quatro vírus, cada um com as proteínas M e E de um sorotipo diferente de DENV. 

Por isso, a Dengvaxia é uma vacina tetravalente, que deveria proteger contra os quatro DENVs. Mas, infelizmente, foi observado que algumas crianças que nunca tinham tido dengue antes da vacinação e se infectaram posteriormente com o DENV apresentaram quadros mais graves da doença. 

Nesse caso, pode ter ocorrido o efeito de ADE, em que os anticorpos produzidos após a vacinação não foram neutralizantes contra o sorotipo de DENV que tais crianças se infectaram posteriormente, e essa resposta facilitou a produção de mais vírus e o desenvolvimento de dengue grave. 

Entretanto, é importante ressaltar que o número de crianças que tiveram dengue grave foi bem pequeno em comparação ao número total de crianças vacinadas. Mesmo assim, atualmente, essa vacina só é recomendada para as pessoas que já tiveram dengue pelo menos uma vez. Isso porque os estudos demonstraram que quem já tinha tido dengue no momento da vacinação não apresentou depois dengue grave, sendo que a maioria ficou protegida contra infecções futuras.

É importante ressaltar que o número de crianças que tiveram dengue grave foi bem pequeno em comparação ao número total de crianças vacinadas. Mesmo assim, atualmente, essa vacina só é recomendada para as pessoas que já tiveram dengue pelo menos uma vez

Outra vacina disponível é a Qdenga, desenvolvida pela farmacêutica Takeda. Esta também é uma vacina viva atenuada, em que um vírus dengue sorotipo 2 foi cultivado em células e se tornou atenuado, não causando mais a doença quando injetado em humanos. Os cientistas, então, trocaram os genes das proteínas M e E da dengue 2 pelos mesmos genes dos outros sorotipos. 

Assim, a Qdenga é constituída de quatro vírus atenuados, cada um contendo os genes dessas proteínas de cada sorotipo. Infelizmente, os estudos até o momento não mostraram proteção contra a dengue 3.

Em estudo

Além das vacinas contra dengue já licenciadas, existem outras em estudo. Umas delas foi desenvolvida nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), nos Estados Unidos, em colaboração com o Instituto Butantã no Brasil, cujos estudos com voluntários humanos estão em fase final.

Esta vacina, também viva atenuada, é constituída dos DENV atenuados pelas técnicas de biologia molecular, em que os cientistas retiraram um pequeno pedaço do RNA do vírus. Isso fez com que tais vírus se tornassem atenuados, não causando mais a doença. Os vírus 1, 3 e 4 foram atenuados e o DENV 4 atenuado foi utilizado para a troca dos genes das proteínas M e E pelos mesmos genes de DENV 2. 

Até o momento, não temos dados suficientes para saber se essa vacina será protetora contra os quatro sorotipos no Brasil, pois, como os sorotipos 3 e 4 de DENV não estão circulando muito no país há vários anos, a avaliação da proteção na população vacinada não pode ser estabelecida.

De qualquer modo, ainda existem muitas lacunas nos estudos das vacinas contra a dengue e novas estratégias vacinais são bem-vindas para auxiliar no combate a essa doença que aflige a nossa população quase todos os verões. Com esse objetivo, nosso grupo tem trabalhado com vacinas de DNA contra dengue há mais de duas décadas. 

Tais vacinas são constituídas de pequenos DNAs circulares, chamados plasmídeos, que contêm um ou mais genes do vírus. Uma das vantagens das vacinas de ácidos nucleicos, como as de DNA ou de RNA, é que elas são capazes de ativar uma ampla resposta na pessoa vacinada, com a produção de anticorpos e de uma resposta imune celular, em que são ativadas células capazes de destruir outras células infectadas com o vírus. 

Outra vantagem das vacinas de DNA é o baixo custo de produção em relação a outros tipos de vacina, sem a necessidade de armazenamento a baixas temperaturas, o que representa uma grande economia e vantagem para a sua utilização em um país continental como o Brasil (figura 3).

Figura 3. As vacinas de DNA: plasmídeo, entrada na célula e no núcleo, síntese do RNA no núcleo, síntese da proteína no citoplasma da célula

CRÉDITO: CEDIDA PELA AUTORA

Utilizando tecnologias de biologia molecular e engenharia genética, construímos diferentes plasmídeos contendo genes de algumas proteínas do DENV. Depois de várias décadas de investigações sobre as respostas imunes geradas contra o DENV em humanos e também em animais de laboratório, sabemos que, embora a produção de anticorpos contra o vírus seja importante na proteção, a ativação da resposta imune celular também atua nesse processo.

Por isso, desde o início de nossos estudos, focamos nas vacinas de DNA contendo tanto o gene da proteína E, que induz a produção de anticorpos neutralizantes, como também de algumas proteínas não estruturais, capazes ativar uma resposta imune celular. Pretendemos assim gerar vacinas que possam ativar respostas imunes que atuam em diferentes fases do processo da infecção viral, sendo mais protetoras.

Desde o início de nossos estudos, focamos nas vacinas de DNA contendo tanto o gene da proteína E, que induz a produção de anticorpos neutralizantes, como também de algumas proteínas não estruturais, capazes ativar uma resposta imune celular

Avaliamos os diferentes plasmídeos que construímos (as vacinas de DNA) em estudos com cultura de células e constatamos a produção das proteínas esperadas. Testamos essas vacinas em camundongos e vimos que algumas delas foram capazes de proteger estes animais contra a infecção pelo DENV. 

Além disso, mapeamos as respostas imunes que foram geradas nos camundongos e sua correlação com a proteção contra dengue. Observamos que, no caso da vacina contendo o gene da proteína não estrutural 1, por exemplo, a proteção se deu pela combinação de anticorpos e de um tipo de célula, chamada linfócito T CD4.

Em paralelo, avaliamos a combinação de uma das nossas vacinas de DNA com outra vacina, baseada no vírus da febre amarela e semelhante ao vírus da vacina Dengvaxia. Observamos que tal combinação foi mais protetora do que as vacinas administradas isoladamente e que a resposta imune celular foi ativada sobretudo com a nossa vacina de DNA. 

Esse estudo gerou uma patente. Acreditamos que a administração de mais de um tipo de vacina contra a dengue deve induzir respostas imunes mais robustas e protetoras. Todas essas investigações são fundamentais para que possamos no futuro propor a utilização de uma ou mais das nossas vacinas em testes com voluntários humanos.

Esse estudo gerou uma patente. Acreditamos que a administração de mais de um tipo de vacina contra a dengue deve induzir respostas imunes mais robustas e protetoras

ALVES, ADA M. B. & CAVALCANTI, SILVIA M. B. ‘Arbovírus: Emergências e Reemergências’, em Pandemias e epidemias causadas por vírus, Garcia , Rita C. C. &  Castro, Tatiana Xavier (org.), Eduff, 2024. (https://www.eduff.com.br/produto/pandemias-e-epidemias-causadas-pelos-virus-e-book-pdf-760)

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KANO, FLORA S., VIDOTTO, ODILON & VIDOTTO, MARILDA C. Vacina de DNA: aspectos gerais e sua aplicação na medicina humana e veterinária. Semina: Ciências Agrárias, 28: 709, 2007.

SCHROEDER, RAONI. ‘Invisíveis para os mosquitos’, em Ciência Hoje n° 410, junho 2024.

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