Epigenética: herança além dos genes

Um sentimento como medo pode ser transmitido a outras gerações? Nossos hábitos alimentares afetam nossos netos e bisnetos? As experiências de vida são capazes de modificar o nosso DNA? As respostas estão na epigenética.

 

Ao final da Segunda Guerra Mundial, milhões de holandeses que viviam na parte do país ocupada pelos nazistas sofreram com o racionamento de comida. Milhares de pessoas morreram de fome, e até mulheres grávidas tiveram sua dieta reduzida a cerca de 400 calorias diárias. Décadas mais tarde, esse trágico episódio da história também impactou a biologia.

Nos anos 2000, diferentes grupos de cientistas passaram a estudar filhos e filhas dessas mulheres e descobriram que esses indivíduos, ao alcançarem idades entre 56 e 59 anos, apresentaram sérios déficits cognitivos associados a um processo de envelhecimento precoce. As pesquisas também apontaram que netos (especificamente os filhos dos filhos) das gestantes expostas à fome apresentavam maior peso associado à obesidade do que descendentes daquelas que se alimentaram normalmente.

Mas como a privação à qual as grávidas holandesas foram submetidas durante a guerra, um fator ambiental, afetou seus filhos na vida adulta e até seus netos? A resposta está na epigenética, um campo da biologia que investiga se as características herdadas por indivíduos podem estar associadas não somente ao código genético, mas também a modificações químicas presentes no DNA. A conclusão, até agora, é que sim.

 

E se sentimentos forem hereditários?

Não é difícil entender por que pessoas de uma mesma família guardam semelhanças físicas tão grandes entre si. Esses indivíduos estão sempre compartilhando códigos genéticos e transmitindo essas características para as gerações futuras, certo? Já quando falamos de características ambientais e socioculturais, essa transmissão aos descendentes parece bem mais complexa. De que forma seria possível ‘registrar’ em nosso DNA sensações como o medo, experiências vividas enquanto éramos crianças ou o tipo de alimentação de nossa mãe quando éramos um embrião? E mais, como tais experiências poderiam ser passadas aos nossos filhos, netos e bisnetos?

Novamente, a tragédia holandesa da Segunda Guerra aponta respostas. As pesquisas sugerem que a restrição calórica (efeito ambiental) pode ter promovido a geração de um código nas células desses indivíduos, porém sem afetar os genes por meio de mutações. A esse efeito de transmissão de características adquiridas ao longo das gerações damos o nome de herança intergeracional (de pai/mãe para filhos) ou transgeracional (ao longo de inúmeras de gerações).

 

Nos pelos dos camundongos

Mas como características adquiridas podem ser passadas através de gerações sem estarem codificadas em nosso material genético? Para entender melhor essas questões e tentar responder a essas perguntas, pesquisadores iniciaram estudos com os camundongos chamados agouti. Embora apresentem o mesmo genótipo (conjunto de características genéticas), esses animais podem apresentar diferentes fenótipos (conjunto de características físicas), como a cor do pelo, que pode variar de castanho claro até negro.

Em camundongos agouti, o mesmo genótipo é capaz de codificar diferentes fenótipos. Quanto mais escura a pelagem, mais saudáveis são os camundongos. Camundongos de pelagem mais clara são obesos e apresentam resistência insulínica. Esse efeito pode ser revertido se as mães forem alimentadas com suplementos como ácido fólico e vitaminas do complexo B12.

Um dos estudos observou a correlação entre a cor do pelo e a obesidade: camundongos de pelo claro eram obesos, enquanto que os de pelo escuro eram saudáveis. No entanto, o padrão de transmissão de tais características não obedecia às regras da genética clássica, pois podia ser modificado pelo tipo de alimentação que a mãe ingeriu durante a gestação. Assim, se fêmeas gestantes fossem alimentadas com dieta rica em ácido fólico e vitamina B12, o número de indivíduos com pelagem escura e saudáveis aumentava.

Esse exemplo é um caso ilustrativo interessante de interação entre nosso código genético e o ambiente: a partir de modificações originadas fora dos indivíduos (nesse caso, hábitos alimentares), podemos obter diferentes manifestações físicas do nosso código genético (o fenótipo). Aqui, a sensação é de que o gene foi capaz de ‘escolher’ que fenótipo manifestar.

De fato, estudos demonstraram que fêmeas de camundongos mutantes deficientes na absorção de ácido fólico geram filhotes com malformações congênitas. Isso não é novo, inclusive a suplementação de folato para mulheres que pretendem engravidar ou que estejam grávidas é mandatória. A novidade é que a neta e a bisneta da fêmea mutante, embora fossem selvagens e captassem níveis normais de folato, continuavam a apresentar defeitos e malformações. Ou seja, a deficiência na captação de folato está relacionada à geração de um novo código, que nesse caso não pode ser genético. Nessa experiência, observamos a transmissão das características por quatro gerações sucessivas, mesmo na ausência do estímulo inicial.

 

Obesidade longe da herança dos genes

Outra demonstração de que características que não são genéticas podem ser transmitidas de pais para filhos foi feita em um estudo realizado neste ano, no qual camundongos mutantes para o gene Dnmt (que inibe os genes regulados pela epigenética) foram alimentados com dieta rica em gorduras. Após três meses, esses camundongos desenvolveram obesidade e resistência insulínica. É importante guardar esse detalhe: eles adquiriam uma doença porque consumiram uma dieta rica em gorduras, não porque tinham em seu genoma um código para desenvolver essa doença.

Em seguida, os pesquisadores isolaram espermatozoides de camundongos mutantes machos saudáveis e de camundongos mutantes obesos, e purificaram seus componentes. Após essa etapa, os pesquisadores injetaram esses componentes em embriões obtidos a partir de camundongos selvagens saudáveis.

Os camundongos gerados a partir dos embriões que receberam os componentes dos espermatozoides de camundongos obesos e mutantes desenvolveram obesidade e resistência insulínica quando adultos. Ou seja, os descendentes herdaram uma doença que foi adquirida por seu pai, não uma doença que estava codificada em seu código genético.

Já os camundongos gerados a partir de embriões que receberam os componentes dos espermatozoides de animais mutantes saudáveis não desenvolveram a doença.

 

A ausência da mãe e seus efeitos

Há outros exemplos dos efeitos da interação entre os códigos genéticos e o ambiente, como padrões de comportamento social. Também na década de 2000, pesquisadores do Canadá começaram a estudar o impacto do cuidado materno sobre a estruturação do comportamento animal e se esses padrões seriam herdados de forma intergeracional. Nesse caso, eles utilizaram ninhadas de camundongos, que foram separadas em dois grupos: um grupo ficou sob os cuidados da mãe, e outro foi afastado dela. Vale ressaltar que esse último grupo foi alimentado adequadamente e mantido no mesmo local dos irmãos, só afastados da mãe. Após os pesquisadores submeterem os camundongos de ambos os grupos a diferentes tipos de teste, eles observaram que aqueles que foram afastados das mães eram mais estressados e agressivos do que os irmãos que permaneceram recebendo os cuidados maternos.

 

O medo que atravessa gerações

Outro trabalho surpreendente testou a capacidade de transmissão de sentimentos como o medo. Camundongos adultos foram expostos simultaneamente a um som e a um choque elétrico, com o objetivo de causar o condicionamento do medo ao sinal sonoro. Após um tempo, somente o sinal sonoro era capaz de disparar os sintomas de medo nos animais. Estes foram então cruzados com fêmeas-controle, não usadas na etapa anterior e não condicionadas. Seus descendentes foram, mais tarde, submetidos ao sinal sonoro sem o choque elétrico e, surpreendentemente, manifestaram os sintomas do medo, mesmo sem nunca terem passado pelos estímulos a que foram submetidos seus ascendentes.

Dos pilares da genética clássica à epigenética

Os exemplos são muitos, mas o que todos têm em comum? Será que podemos explicá-los de uma forma unificada utilizando os conceitos da genética clássica? Para se chegar a uma resposta, é importante rever esses pilares, fundamentados sobre descobertas de várias gerações de cientistas.

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1. Mendel e as ervilhas

O pioneiro foi o monge austríaco Gregor Mendel (1822-1884). Durante seu trabalho com plantas, ele constatou que fenótipos observados na semente das ervilhas podiam ser transmitidos transgeracionalmente por indivíduos pertencentes a uma mesma linhagem. O conjunto de regras que Mendel identificou é chamado de Leis de Mendel.

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2. E nasce a ideia de gene

No início do século 20, pesquisadores começaram a observar e estudar a transmissão de características físicas entre animais de mesma linhagem. Já em 1909, o botânico e geneticista dinamarquês Wilhelm Ludvig Johannsen (1857-1927) cunhou o conceito de gene, que seria a unidade fundamental da hereditariedade, responsável por transmitir características físicas de maneira transgeracional.

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3. A mosca e os cromossomos

Em 1915, o célebre drosofilista norte-americano Thomas Hunt Morgan (1866-1945) nos ensinou que os cromossomos são responsáveis pela transmissão transgeracional de características físicas entre indivíduos. Assim, a união das Leis de Mendel ao conceito de gene e à teoria cromossômica da herança fundamentou as bases da genética clássica.

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4. As respostas do DNA

Em 1953, com a publicação do norte-americano James Watson (hoje com 90 anos de idade), do britânico Francis Crick (1916-2004) e do neozelandês Maurice Wilkins (1916-2004), conseguimos entender que os cromossomos são quimicamente compostos por ácido desoxirribonucleico, o DNA. É nesse cenário que começa a ser debatida uma nova conceituação que possa unir nosso código genético às diferentes experiências pelas quais passamos ao longo de nossas vidas. Algo que refletiria a história única de interação com o ambiente que cada indivíduo experimenta.

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5. Epi + genética

Assim o termo epigenética passa a ser usado para designar o conjunto de interações com o ambiente que uma célula experimenta ao longo do desenvolvimento. Antes disso, em 1942, o biólogo britânico Conrad Hal Waddington (1905-1975) já havia cunhado a expressão ‘panorama epigenético’ (epigenetic landscape) e utilizado o termo epigenética pela primeira vez na literatura.

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Dos pilares da genética clássica à epigenética

Os exemplos são muitos, mas o que todos têm em comum? Será que podemos explicá-los de uma forma unificada utilizando os conceitos da genética clássica? Para se chegar a uma resposta, é importante rever esses pilares, fundamentados sobre descobertas de várias gerações de cientistas.

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1. Mendel e as ervilhas

O pioneiro foi o monge austríaco Gregor Mendel (1822-1884). Durante seu trabalho com plantas, ele constatou que fenótipos observados na semente das ervilhas podiam ser transmitidos transgeracionalmente por indivíduos pertencentes a uma mesma linhagem. O conjunto de regras que Mendel identificou é chamado de Leis de Mendel.

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2. E nasce a ideia de gene

No início do século 20, pesquisadores começaram a observar e estudar a transmissão de características físicas entre animais de mesma linhagem. Já em 1909, o botânico e geneticista dinamarquês Wilhelm Ludvig Johannsen (1857-1927) cunhou o conceito de gene, que seria a unidade fundamental da hereditariedade, responsável por transmitir características físicas de maneira transgeracional.

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3. A mosca e os cromossomos

Em 1915, o célebre drosofilista norte-americano Thomas Hunt Morgan (1866-1945) nos ensinou que os cromossomos são responsáveis pela transmissão transgeracional de características físicas entre indivíduos. Assim, a união das Leis de Mendel ao conceito de gene e à teoria cromossômica da herança fundamentou as bases da genética clássica.

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4. As respostas do DNA

Em 1953, com a publicação do norte-americano James Watson (hoje com 90 anos de idade), do britânico Francis Crick (1916-2004) e do neozelandês Maurice Wilkins (1916-2004), conseguimos entender que os cromossomos são quimicamente compostos por ácido desoxirribonucleico, o DNA. É nesse cenário que começa a ser debatida uma nova conceituação que possa unir nosso código genético às diferentes experiências pelas quais passamos ao longo de nossas vidas. Algo que refletiria a história única de interação com o ambiente que cada indivíduo experimenta.

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5. Epi + genética

Assim o termo epigenética passa a ser usado para designar o conjunto de interações com o ambiente que uma célula experimenta ao longo do desenvolvimento. Antes disso, em 1942, o biólogo britânico Conrad Hal Waddington (1905-1975) já havia cunhado a expressão ‘panorama epigenético’ (epigenetic landscape) e utilizado o termo epigenética pela primeira vez na literatura.

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Proteínas que modificam o DNA

Foi a partir desses avanços tecnológicos (ver ‘Dos pilares da genética clássica à epigenética’) que conseguimos compreender que o DNA de eucariotos (animais, vegetais, fungos, entre outros que possuem células maiores e mais complexas que os procariotos, organismos unicelulares, como as bactérias) está associado a proteínas chamadas histonas e que suas funções de duplicação, reparo e transcrição são dependentes dessa associação. Ou seja, o DNA ‘nu’, sem sua parte proteica, não tem função nem capacidade de regulação.

O nosso material genético fica dentro do núcleo da célula e é composto por ácido desoxirribonucleico (DNA). O DNA está enrolado ao redor das histonas, proteínas que auxiliam na compactação do DNA no núcleo celular. Como as histonas podem ser modificadas quimicamente, essas alterações também podem ser herdadas junto com nosso DNA. As citosinas, bases nitrogenadas que compõem o DNA, também podem ser modificadas quimicamente por metilação. Assim como as histonas e suas modificações químicas, a metilação de citosinas também pode ser herdada.

Embora conhecidas desde 1884, o estudo do papel das histonas só se expandiu a partir dos anos 1960 com Vincent G. Allfrey (1921-2002), dentre outros. Esses estudos mostraram que as proteínas histonas podem regular a função do DNA a que estão associadas, por meio de diferentes modificações químicas que podem sofrer.

Outro achado surpreendente foi a comprovação de que não somente o DNA, mas também as proteínas histonas a ele associadas são transmitidas inter e transgeracionalmente e são capazes, portanto, de conferir, ao longo de sucessivas gerações, padrões de regulação do DNA.

Além das modificações químicas em histonas, outra modificação química feita diretamente no DNA também vem sendo estudada: é a chamada metilação de citosinas. As citosinas são moléculas que entram na composição química do DNA. A metilação de citosinas provoca a diminuição da expressão gênica.

Pelas regras da genética clássica, nossas características físicas (fenótipos) são herdadas por meio da transmissão dos genes ao longo das gerações. Portanto, características que adquirimos ao longo de nossa vida, e que não estavam codificadas em nosso código genético original, não poderiam ser transmitidas. No entanto, modificações químicas feitas em nosso DNA (metilação) ou nas proteínas associadas a ele (histonas) também podem influenciar nosso fenótipo e ser transmitidas ao longo das gerações sem alterar nosso código genético. As modificações químicas feitas sobre o nosso DNA ao longo da vida são estudadas pela epigenética.

O epigenoma

A partir desses pilares da epigenética – as pesquisas sobre histonas e metilação de citosinas –, tem-se demonstrado que as características herdadas entre indivíduos podem estar associadas a modificações químicas presentes no DNA, e não somente ao código genético. Em todos os exemplos que discutimos, seja o caso das grávidas expostas à grande fome, dos camundongos agouti, da transmissão da sensação de medo ou da herança de doenças metabólicas, foi possível constatar perturbações no código de modificações químicas do DNA, ou epigenoma.

Em todos os indivíduos estudados nesses casos, o código epigenético foi capaz de ser alterado mediante aos diferentes estímulos utilizados, e após ser modificado, foi transmitido aos descendentes. Muitas discussões ainda se sucedem para formalizar esses achados e buscar respostas a perguntas ainda sem solução. No entanto, é possível notar o papel da epigenética em diferentes processos biológicos, desde a concepção ao desenvolvimento, como uma interface para conectar nosso código genético ao ambiente no qual estamos imersos.

As pesquisas nesse campo já vislumbram aplicações no futuro. É forte a relação da epigenética com doenças como câncer e diabetes. E muitos estudos estão sendo desenvolvidos para elaborar e testar novos medicamentos que possam regular as modificações químicas do DNA e restaurar o epigenoma saudável de uma célula. Assim, a epigenética abre novas frentes e esperanças para a solução de velhos problemas.

Katia Carneiro

Instituto de Ciências Biomédicas,
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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