Os dois crimes

Quem matou Bernardo Lourenço Viana, próspero negociante da região do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, no início do século 19?

O morto, dono da hospedaria Vale Longo, era traficante de escravos e, apesar de rico, figura indigesta até mesmo para as elites locais. No entanto, as investigações sobre seu assassinato foram acompanhadas pelo próprio Intendente Geral de Polícia, Paulo Fernandes Viana, que despachava a cada dois dias com o D. João VI. As circunstâncias em que o corpo foi encontrado fizeram do falecido “o defunto mais estranho de toda a São Sebastião do Rio de Janeiro”.

A notícia da morte, tal como saiu em um jornal da época, é o início de O crime do cais do Valongo, romance policial ambientado nas ruas do Rio de Janeiro no tempo em que a família real portuguesa estava no Brasil com sua corte. A autora vai além da trama que revela detalhes da vida do comerciante e suas relações com aqueles que o cercavam. Os personagens que lhe são próximos ganham vida nas páginas do livro e permitem pensar não somente na autoria do crime, mas nas possíveis razões. E a trajetória dessas pessoas, entre as quais têm destaque os cativos do negociante, ganha profundidade histórica e remonta ao continente africano, com referências à dor da captura, da travessia e da vida no cativeiro.

Dois narradores trazem perspectivas distintas das circunstâncias que cercam a misteriosa morte: Muana, africana de Moçambique, alfabetizada e com dons espirituais até mesmo para ela desconhecidos; e Nuno, mestiço pobre, de reputação duvidosa, boêmio e sonhador. Cada um deles apresenta outros personagens e partes da história, que assim vai se tecendo ao longo do livro.

O crime do cais do Valongo

Eliana Alves Cruz
Rio de Janeiro, editora Malê,
202 p., R$ 42,00
Eliana Alves Cruz, autora de O crime do cais do Valongo. Foto: divulgação

Além de um crime misterioso e um final surpreendente, ingredientes clássicos na literatura policial, O crime do cais do Valongo apresenta o Rio de Janeiro como a mais afro-atlântica das cidades das Américas naquele tempo, com ruas ocupadas pela população negro-africana, sobretudo na região portuária. Surgem personagens reais que se misturam aos da ficção, fazendo lembrar que aquelas histórias na cidade poderiam ter ocorrido de verdade. O espaço em torno do cais do Valongo, com seu complexo escravagista, se torna, mais do que um cenário, um fator determinante nos eventos.

Eliana Alves Cruz, escritora e jornalista, autora do premiado romance Água de barrela, traz ao leitor uma história fascinante que, afinal, tem como temas centrais dois crimes: o que levou à morte o comerciante e a própria escravidão.

Monica Lima e Souza

Instituto de História
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Futebol a serviço da economia

The beautiful game. É assim que ingleses referem-se, ocasionalmente, e talvez com certa dose de orgulho paternal, ao futebol. O título do livro de Ignacio Palacios-Huerta, The beautiful game theory, é um espirituoso jogo de palavras relacionado ao seu assunto principal: um estudo detalhado e sistemático sobre o mundo do futebol, tomando como ponto de partida a teoria dos jogos, área da matemática com aplicações importantes em mercados financeiros, leilões, estratégia militar, relações internacionais e até biologia evolucionária. A proposta do autor é servir-se da enorme quantidade de informações quantitativas associadas ao futebol, a fim de elaborar evidência clara para a validação de teorias econômicas em voga (que abarcam, inclusive, elementos contemporâneos de psicologia cognitiva e sociologia).

O livro, organizado como uma partida de futebol, está dividido em duas partes (first half e second half), com um intervalo entre elas (half-time). É pertinente, portanto, que esta resenha seja escrita com o estilo de um comentarista de futebol.

Palacios-Huerta entra em campo com ataque em carga máxima. Logo no início da partida, ilustra, de modo convincente, como a estatística de cobranças de pênaltis (foram analisadas 9.017 cobranças da liga europeia)

satisfaz surpreendentemente bem ao ‘equilíbrio de Nash’, resultado de ouro da teoria dos jogos.

Após o golaço inicial, a vitória é consolidada com discussões interessantes. Examinam-se como é delicada a concepção de experimentos controlados de laboratório, os vieses de afinidade e rivalidade entre competidores, o fenômeno da indução imitativa de estratégias, respostas fisiológicas neurais dos jogadores (por meio de ressonância magnética nuclear funcional) e a existência de pressão psicológica sobre batedores de pênaltis (a equipe que começa a série de cobranças tem maior chance de vitória). Sugere-se, de modo interessante, que as disputas de pênaltis podem se tornar mais justas pelo uso do chamado ‘protocolo PTM’, em que, em vez da  alternância de cobranças, no formato AB AB (e assim por diante), opta-se pelo formato ABBA BAAB…

No intervalo do jogo, o autor concentra sua atenção nas bolsas de apostas (a mais célebre de todas, a inglesa) para mostrar de que forma a ‘hipótese de mercado eficiente’ é corroborada pela dinâmica das cotações de apostas. Concretiza-se aqui a promessa de Palacios-Huerta de que o futebol pode servir como modelo concreto para o teste e aprimoramento de teorias econômicas gerais.

No segundo tempo, o time retorna modificado. Questões diretamente ligadas à teoria dos jogos não são agora abordadas, mas a partida continua suficientemente interessante para prender a atenção do(a) espectador(a). Discutem-se tópicos como a pressão social da torcida sobre árbitros e (novamente) o papel da pressão psicológica na eficiência dos batedores de pênaltis em decisões, mostrando como ela foi efetivamente superada em certa temporada do campeonato argentino (deixarei o leitor curioso). O problema do controle da violência entre torcedores e a relação entre performance e estratégia das equipes e o sistema FIFA para pontuações de jogos também são discutidos.

The beautiful game theory: how soccer can help economics

Ignacio Palacios-Huerta
Rio de Janeiro, editora Malê,
EUA, Princeton University Press, 224 p., R$ 190,38; e-book: R$ 66,59

A partida é encerrada com um ‘olé’ final, no qual Palacios-Huerta apresenta metodologias de sucesso para a detecção de políticas discriminatórias nas contratações dos jogadores de futebol.

Não há dúvida de que The beautiful game theory é um valoroso trabalho, que abre perspectivas que vão muito além do contexto futebolístico. Enfatizo que o texto contém uma profusão de dados estatísticos que embasam suas ideias de forma cientificamente rigorosa. Por isso, a leitura pode ser difícil. Mais do que uma obra de divulgação, trata-se de um livro de estudo, para ser acompanhado com lápis e papel, mas com um texto muito bem escrito e de grande apelo emocional para os amantes do futebol (eis aqui, talvez, um fator limitante para a comunicabilidade do trabalho).

 

Luca Moriconi

Instituto de Física
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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