Experimentação com animais: uma polêmica sobre o trabalho científico

Nos últimos tempos, os meios de comunicação brasileiros divulgaram notícias sobre tentativas de proibir sumariamente o uso de animais em pesquisas científicas. A questão da experimentação com animais é complexa e os cientistas – ao contrário do que alguns pensam — não estão alheios a ela. Organizações científicas internacionais e instituições públicas ou privadas do setor, em diferentes países, debatem o tema e buscam soluções para reduzir o número de animais utilizados, planejar as pesquisas de forma a lhes causar menor sofrimento e substituí-los sempre que for possível. O emprego de animais em estudos científicos ainda é indispensável em muitos casos, mas isso é feito hoje de acordo com normas éticas internacionalmente aceitas, e os próprios cientistas investigam novos métodos que permitam minimizar ou eliminar essa necessidade.

            

É difícil estimar o número de animais empregado atualmente, em todo o mundo, em experimentos científicos ou no ensino. Um cálculo aproximado sugere algumas dezenas de milhões por ano, sendo 15 milhões nos Estados Unidos, 11 milhões na Europa, 5 milhões no Japão, 2 milhões no Canadá e menos de 1 milhão na Austrália (no Brasil, o número é desconhecido, mas insignificante diante dos totais mundiais). Pode-se dizer que 80% dos animais experimentais são roedores – camundongos, ratos e cobaias – criados para essa finalidade, e que outros 10% são peixes, anfíbios, répteis e pássaros. Um terceiro grupo abrange coelhos, cabras, bois, porcos e, em menor quantidade, cachorros, gatos e algumas espécies de macacos. Eles substituem o ser humano como objeto de experimentação em pesquisas científicas, na preparação e controle de qualidade de medicamentos e no ensino.

A utilização dos animais em pesquisas vem sendo discutida desde o século 18. Em 1789, o filósofo inglês Jeremy Bentham (1748-1832), um dos primeiros pensadores a se preocupar com o bem-estar dos animais, já dizia: “A questão não é se os animais podem raciocinar ou falar, mas se podem sofrer.” Quase um século depois, em 1865, o fisiologista francês Claude Bernard (1813-1878) defendia o direito de fazer experimentos em animais e vivissecção: “Eu penso que temos esse direito, total e absolutamente. Seria estranho se reconhecêssemos o direito de usar os animais para serviços caseiros e alimentação, mas proibíssemos seu uso para o ensino de uma das ciências mais úteis para a humanidade. Experimentos devem ser feitos tanto no homem quanto nos animais. Os resultados obtidos em animais podem ser todos conclusivos para o homem, quando sabemos como experimentar adequadamente.”

Essas duas observações definem o ponto principal do problema. O progresso das ciências médicas, biomédicas, biológicas e assemelhadas dependeu e ainda depende da experimentação em animais, e existem numerosos exemplos. Alguns defensores mais radicais dos direitos dos animais argumentam que, como estes são diferentes do ser humano, nada do que se estuda neles ajuda a entender a nossa espécie. Nada mais falso, já que todas as células vivem em conseqüência de um concerto de reações químicas muito semelhantes em todos os organismos – desde os mais simples até o Homo sapiens .

Para entender o funcionamento de um órgão ou tecido, os antigos fisiologistas, como o francês Claude Bernard (1813-1878), o retiravam de um animal e observavam os efeitos de sua ausência. Essa técnica pioneira, embora causasse sofrimento, permitiu que esses pesquisadores fizessem muitas descobertas sobre as funções dos órgãos, levando a avanços no conhecimento preciso de suas funções e no diagnóstico e no tratamento de diversas doenças humanas. Afinal, em todos os vertebrados – humanos ou não — os rins filtram o sangue e formam urina, o estômago digere os alimentos, o pâncreas produz enzimas digestivas e assim por diante. Não podemos nos esquecer que todos eles descendem de um tronco evolutivo comum.

Os animais também ajudaram e ajudam a medicina de outras maneiras. Eles são utilizados, por exemplo, para a experimentação de medicamentos ou procedimentos antes de sua aplicação em seres humanos. Isso foi fundamental na pesquisa e no desenvolvimento de medicamentos como anestésicos, antibióticos, anticoagulantes, insulina e drogas para controlar a pressão sangüínea ou a rejeição em transplantes, entre outros. A experimentação prévia em animais também é relevante nos casos de muitos medicamentos, de vacinas (para difteria, poliomielite, meningite bacteriana e outras); de procedimentos como os próprios transplantes, a transfusão de sangue, a diálise renal e a substituição de válvulas cardíacas; e, finalmente, de tratamentos para asma, leucemia e outras doenças.

Mais recentemente, o avanço das técnicas de biologia molecular permitiu aos cientistas retirar um gene de uma célula ou de um animal e estudar os efeitos de sua ausência nas interações entre as reações químicas que mantêm essa célula viva ou nas funções normais desse animal. Nos últimos 10 anos, aumentou bastante o uso, em pesquisas científicas, de animais geneticamente modificados (com genes inseridos) ou com defeitos genéticos (com genes suprimidos ou ‘desligados’). Esses animais ajudam a responder às perguntas básicas: a superexpressão ou a ausência de um gene afetam o quê? Além destas, há muitas outras perguntas importantes. Seria possível, por exemplo, repor um gene defeituoso de um indivíduo e com isso curar um defeito genético, tornando realidade a terapia gênica? Ou então: o que causa as doenças degenerativas — como a de Alzheimer — e como curá-las? Essas perguntas levam a outra: como fazer experimentos que permitam responder a essas questões sem a utilização de animais?

Maria Júlia Manso Alves e
Walter Colli
Departamento de Bioquímica,
Instituto de Química,
Universidade de São Paulo

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