As montanhas ocupam 25% da superfície do planeta e abrigam 10% da população humana, além de várias espécies endêmicas (encontradas somente nesses ambientes). Metade dos habitantes da Terra, de diferentes etnias, faz uso direto de seus recursos. Nelas, nascem os principais rios do mundo.
As montanhas são importantíssimas no estudo das interações entre os seres vivos e o ambiente, pois nelas as variações de condições e recursos, que muitas vezes só são verificadas viajando-se milhares de quilômetros, podem ser observadas em uma pequena distância. Por exemplo, a cada 100 m de altitude, a temperatura diminui cerca de 1ºC, o que significa dizer que, em uma altitude como a da serra do Cipó (MG), entre a base da montanha (750 m) e as áreas mais elevadas (1.700 m), pode haver uma diferença de 9,5ºC. Associada a essas mudanças de temperatura, é comum encontrarmos maior umidade relativa do ar e ocorrência de neblinas nas áreas mais elevadas, assim como um solo mais pobre em nutrientes e elevada intensidade de luz, o que cria hábitats distintos daqueles encontrados na base da montanha, mais quente e seca.
As montanhas representam um grande repositório de vida silvestre e são laboratórios naturais, pois funcionam como verdadeiros medidores de efeitos das alterações climáticas sobre os seres vivos. Os impactos das atividades antrópicas e das mudanças globais do clima são pronunciados nesses ambientes.
Os gases do efeito estufa podem gerar um aquecimento médio da temperatura global de 1º C a 3,7º C até o ano de 2100, segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas. Esse aquecimento irá variar consideravelmente entre regiões e já é uma realidade hoje. Algumas de suas maiores evidências vêm das áreas montanhosas, como o derretimento de geleiras e mudanças na distribuição e até extinções de espécies que perderam seu ambiente natural. As mudanças que vêm ocorrendo nos sistemas montanhosos antecipam o que poderá acontecer nas regiões de baixa altitude. Nas montanhas, podemos detectar os primeiros sinais das alterações climáticas e entender como as espécies ou ecossistemas respondem a essas alterações. Assim, as montanhas são verdadeiras sentinelas das mudanças climáticas.
Impactos do clima
As montanhas ocupam diferentes regiões e posições no globo, apresentam extensão geográfica variável e têm formato, altitude, cobertura vegetal e regime climático diversos. Assim, os efeitos das mudanças climáticas sobre esses ambientes também serão desiguais. As faixas de temperatura mais frias, próximas ao topo, desaparecerão e, com elas, as espécies típicas desse ambiente. Também serão observados impactos maiores nessas áreas em relação a precipitação, incidência de geadas e umidade, afetando diretamente o clima regional e maximizando mais ainda os efeitos do aquecimento global.
As mudanças provocadas pelo aquecimento global são rápidas em comparação com os milhares de anos necessários para a evolução natural das espécies e a colonização dos ambientes. Muitos estudos já revelam o deslocamento de espécies de plantas e animais para regiões mais altas, conforme aumenta a temperatura do globo. As espécies raras e adaptadas ao frio são as mais ameaçadas, por não terem para onde se mover. O risco de extinção dessas espécies cresce com o aumento da frequência de eventos climáticos extremos (tempestades, secas etc.), estações prolongadas de fogo e incêndios mais graves, além de surtos de doenças e pragas.
Nas montanhas, estão ocorrendo os primeiros colapsos da biodiversidade do planeta, e essas mudanças provocarão a extinção de uma parcela expressiva da riqueza de vida na terra. Embora haja poucas montanhas no Brasil, a cordilheira do Espinhaço pode representar a sentinela brasileira na avaliação dos efeitos das mudanças climáticas nos trópicos.
Espinhaço, a cordilheira brasileira
Com formações montanhosas que se estendem por mais de 1.200 km de comprimento, largura que varia entre 50 e 100 km e altitudes que podem chegar a mais de 2.200 m, a cadeia do Espinhaço é considerada a única cordilheira do Brasil, orientada no sentido norte – sul, entre Bahia e Minas Gerais. O geólogo alemão Wilhelm Ludwig von Eschwege (17771855), deu-lhe o nome de Espinhaço no século 19, devido a sua forma singular, similar à espinha dorsal humana.
A ocupação humana na cordilheira do Espinhaço após o descobrimento do Brasil iniciou-se a partir do desbravamento do interior do território brasileiro, quando foram encontradas as primeiras reservas minerais de pedras preciosas e semipreciosas. Mais tarde, com a descoberta dos grandes depósitos ferríferos no Espinhaço Meridional, a ocupação da cordilheira ganhou outro impulso, principalmente pela presença da atividade mineradora, em busca de ferro, manganês, alumínio e ouro.O início de sua formação remonta à era Proterozoica, há aproximadamente 1,8 bilhões de anos. A ocorrência de grandes eventos geológicos modelou ao longo dos anos sua forma atual, dividindo-a sobretudo nos grandes compartimentos do Espinhaço Setentrional e Espinhaço Meridional, com o Quadrilátero Ferrífero em seu extremo sul e a região da Chapada Diamantina no extremo norte. A composição da cordilheira é marcada predominantemente por grandes formações de quartzo, caracterizadas pela presença de cristas, escarpas (encostas íngremes) e cânions bem definidos. É o grande divisor de águas para duas importantes bacias hidrográficas brasileiras – a do rio São Francisco e a do rio Doce – e tem grande diversidade biológica e social.
Considerada sua riqueza física, biótica e socioeconômica, o Espinhaço tem contribuído para o avanço das pesquisas em conservação. São muitos os esforços para melhorar a obtenção e o acesso às informações sobre a região, entre eles, o uso de tecnologias vem ganhando espaço. Atualmente, o que existe de mais moderno está sendo usado no monitoramento das condições ambientais do Espinhaço Meridional. Por meio do Sistema de Geoinformação e Pesquisa do Espinhaço, o Geospine, nosso grupo tem como objetivo organizar e compartilhar uma base de dados espaciais da região, melhorando assim a capacidade de gerir esse importante patrimônio.
Hábitats variados
A grande diversidade da cordilheira do Espinhaço se reflete em sua fauna e sua flora. A biota em montanhas é diversa porque esses ambientes formam diferentes zonas climáticas em distâncias muito curtas e ainda exibem grande variedade de hábitas devido à topografia acidentada. Além disso, ocorrem hábitats isolados e em mosaico (dispostos lado a lado, separados por distâncias muito pequenas) e distúrbios mo- derados, como deslizamento de terra e fogo, que promovem diversificação local e regional.
Dois padrões têm sido descritos quando se observa a relação entre espécies e altitude: o declínio da riqueza de espécies em áreas mais elevadas ou um pico de riqueza nas altitudes intermediárias. Embora essas variações sejam determinadas primariamente por mudanças no clima e no solo ao longo do tempo, muitos outros fatores podem influenciá-las. No Espinhaço, essa diversidade é ainda afetada por três grandes biomas: caatinga (norte), cerrado (oeste) e mata atlântica (leste).
Na serra do Cipó, formação que faz parte da cordilheira do Espinhaço, a encosta oeste é mais seca e dominada por campos rupestres (ecossistema do cerrado caracterizado por altíssima biodiversidade edominância de ervas e arbustos retorcidos resistentes ao fogo e ao ambiente adverso causado pelo clima quente e seco e pelos solos pobres em nutrientes). Já a encosta oriental é mais úmida e dominada por mata atlântica (figura 1).
Figura 1. Localização da cordilheira do Espinhaço, com a indicação das diferentes altitudes onde o estudo foi realizado na serra do Cipó (MG)
Os solos na serra do Cipó são rasos e pobres em nutrientes, mas sua qualidade melhora na base. A temperatura do solo diminui nas altitudes maiores, prejudicando a germinação de sementes, a absorção de água e minerais pelas plantas e as atividades microbianas. O ph, componente de grande importância na composição do solo, também diminui com o aumento da altitude. O ph baixo (menor que 6,0) caracteriza solos ácidos e, junto com o alto teor de alumínio típico dessas rochas, dificulta mais ainda a absorção de nutrientes pelas plantas.
O clima também varia muito com a altitude. Além da diminuição na temperatura, o aumento da altitude na serra do Cipó está associado a uma maior precipitação e umidade do ar. A velocidade do vento, outro fator de grande relevância para a fauna e a flora, pode atingir até 110 km/h nas áreas mais elevadas dessa formação.
Diversidade afetada
O clima e o solo condicionam os microambientes e determinam drásticas mudanças na estrutura da vegetação e nos animais e micro-organismos a eles associados na cordilheira do Espinhaço. Nas altitudes abaixo de 900 m, o cerrado é a vegetação dominante, enquanto entre 900 e 1.200 m, há uma área de transição entre cerrado e campo rupestre, que se misturam na paisagem, formando um mosaico. Em hábitats mais elevados, acima de 1.300 m, a vegetação apresenta árvores esparsas e, a mais de 1.400 m, a área é dominada por campos rupestres em solo arenoso, com ilhas naturais de mata atlântica (figura 2).
Figura 2. Principais formações vegetais existentes na serra do Cipó (MG) e variação das características do solo (barras azuis) e do clima (barras rosas) em função da altitude. Esses parâmetros, associados às diferenças no relevo, condicionam distintos microambientes e são a base principal para a variação da flora, que, por sua vez, influencia a fauna, afetando assim toda a paisagem, a biodiversidade e os serviços ambientais prestados pelo ecossistema
A riqueza de plantas herbáceas e árvores diminui com o aumento da altitude. Em um estudo da distribuição da flora na serra do Cipó, foram encontradas na área de amostragem 92 espécies vegetais a 800 m de altitude e apenas 25 em locais próximos a 1.400 m. Árvores e arbustos dominam a paisagem nas altitudes mais baixas, enquanto espécies herbáceas predominam nas altitudes maiores. A reprodução das plantas está estreitamente ligada ao clima. As altitudes intermediárias (entre 1.100 e 1.200 m) mostram padrões de floração e frutificação contínuos, enquanto nos extremos há grande variação.
O número de espécies de vários grupos de insetos diminui com o aumento da altitude, como é o caso dos cupins. As mudanças na temperatura e na estrutura da vegetação são os mecanismos que mais influenciam esses animais. Eles dependem da vegetação e sua busca por recursos alimentares (forrageamento) é largamente afetada pelo clima.
Apesar da alta diversidade de formigas na serra do Cipó – cerca de 170 espécies –, os ambientes mais altos são mais pobres, principalmente devido à estrutura mais simples da vegetação. Ambientes mais diversos e complexos têm maior disponibilidade de abrigo, alimento e proteção.
A diminuição da temperatura e a estrutura mais simples da vegetação em altitudes mais elevadas reduzem ainda o número de besouros rola-bosta e a diversidade de borboletas e de insetos herbívoros. A redução da estrutura da vegetação nessas áreas, associada ao aumento do estresse ambiental, também diminui a diversidade de pássaros.
Em relação aos fungos micorrízicos (associados a raízes), a diversidade de espécies é maior em altitudes intermediárias, o que provavelmente está relacionado ao maior número de hábitats na área de transição entre cerrado e campo rupestre. Os campos ruprestres são o ambiente mais rico do mundo em espécies desses fungos.
Alterações marcantes
Um dos resultados mais marcantes dos estudos na cordilheira do Espinhaço é que o grau das mudanças ecológicas em curso é tão pronunciado quanto o relatado em montanhas mais elevadas do planeta. Mas, curiosamente, a variação de altitude es- tudada é de apenas 600 m e as regiões mais elevadas não representam ambientes de temperaturas baixas extremas, como as encontradas na maioria dos sistemas montanhosos do mundo.
Entre os padrões de distribuição de espécies encontrados, todos os organismos estudados – com exceção dos fungos micorrízicos – foram mais diversos em altidudes baixas, onde a temperatura é maior e a umidade relativa do ar menor. Ficou evidente a importância da estrutura da vegetação e da existência de microambientes para a riqueza de alguns grupos.
Como as respostas dos organismos vivos ao ambiente não são as mesmas, eles são impactados de forma diferenciada pelas alterações no clima. Mas o relato simples de números de espécies não é suficiente para entender a magnitude do efeito das mudanças climáticas – preconizadas por cientistas de todo o mundo – sobre a biodiversidade. É preciso um monitoramento contínuo para saber quão profundos são os impactos, quais as chances de sobrevivência diante da direção e da intensidade dessas mudanças e quais características das paisagens são necessárias para a manutenção desses grupos de organismos perante o aumento dos estresses provocados pelo homem.
As montanhas assumem o papel de sentinelas ao nos alertar para os impactos que as mudanças no clima poderão ter sobre a biodiversidade e os serviços ambientais prestados pelos ecossistemas. Assim, poderemos melhor entender esses efeitos e planejar ações para mitigá-los.
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Geraldo Wilson Fernandes
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Hernani A. Almeida
Felipe Melo
Cássio A. Nunes
Frederico Neves
Universidade Federal de Minas Gerais
Yule Roberta F. Nunes
Universidade Estadual de Montes Claros (MG)
Patricia Morellato
Universidade Estadual Paulista
Rodolfo Dirzo
Universidade Stanford (EUA)