As ciências sociais sempre estiveram atormentadas por uma ambição e um dilema. Elas ambicionam tornar-se a forma habitual e autorizada de reflexão de uma sociedade complexa sobre si mesma. Essa pretensão carrega um preço: a necessidade de articular acessibilidade e cientificidade, demanda que muitas vezes surge sob a forma de um dilema. Como todas as ciências modernas, elas são um modo racional de resolver problemas, escolhidos pelos seus praticantes e/ou pela sociedade.
Desse ponto de vista, não se distinguem da física, considerada a ciência modelar da modernidade. Mas dela se diferenciam pelo objeto, com consequências de monta, e pela exigência de acessibilidade que, no caso da física, poderia significar uma ameaça fatal ao seu desenvolvimento. Para as ciências sociais, a acessibilidade é tão relevante quanto a sua cientificidade, de tal modo que elas estão sempre submetidas a uma dupla tentação, ou tensão: a de se fecharem em um domínio exclusivo de poucos iniciados – à maneira da física – ou de se transformarem em um mero discurso persuasivo, protegido pela aura paradoxal da razão. Entre Cila e Caríbdis, elas, no entanto, se movem.
Essas observações vêm a propósito de uma coletânea lançada pela Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) no fim de 2010, com o título Horizontes das Ciências Sociais no Brasil, destinada a levar a um público mais amplo o que vem sendo feito nas últimas décadas pela nossa antropologia, nossa ciência política e nossa sociologia. A coletânea, coordenada por Carlos Benedito Martins, é composta de três volumes, cada um deles cobrindo a produção dessas áreas.
Os organizadores dos volumes são os primeiros a concordar que não foi possível retratar fielmente a complexidade constitutiva das ciências sociais no Brasil contemporâneo. Mas nem era essa a intenção, dados o tempo e o espaço disponíveis. O valor dessa coletânea pode ser estimado, no entanto, pela lembrança das exigências postas às ciências sociais – a da cientificidade e a da acessibilidade –, sem as quais elas não cumprem a sua ambição maior.
De um lado, a coletânea é uma reflexão dos cientistas sociais sobre sua própria prática, que implica a permanente eleição de problemas e a escolha dos modos de enfrentamento e resolução desses mesmos problemas. Ainda que nem tudo esteja considerado, a coletânea é uma revelação do modo de proceder das ciências sociais no país, capturando a dinâmica que comanda a constituição de campos temáticos fundamentais e o desdobramento do debate que lhes oferecem profundidade e eficácia. Assim, os vários artigos reunidos expõem a natureza metódica do empreendimento das ciências sociais entre nós.
De outro lado, essa exposição é feita tanto para os próprios cientistas – ou para estudantes de ciências sociais – quanto para a sociedade. De tal modo que esta possa julgar se o elenco dos problemas estabelecidos pelas ciências sociais corresponde, de fato, aos problemas que ela julga cruciais, e se a reflexão desenvolvida por elas pode efetivamente significar passos decisivos na resolução dos desafios que ela vê como urgentes.
É possível dizer que, na sua forma e no seu conteúdo, esta coletânea expressa a confiança de uma comunidade de cientistas no seu modo de proceder e na relevância de seu trabalho. Mas é também uma prestação de contas à sociedade, é um movimento de abertura e de convite para que ela faça das ciências sociais uma de suas armas reflexivas.
Rubem Barboza Filho
Departamento de Ciências Sociais
Universidade Federal de Juiz de Fora