Nascimento da medicina brasileira


A vinda da família real portuguesa para o Brasil, em 1808, deu início a uma série de transformações profundas na colônia, que se tornou, a partir de então, o centro do império lusitano. Essa migração, motivada pela ameaça de invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas, propiciou, além da criação de uma complexa estrutura para administrar as possessões portuguesas, a fundação de instituições necessárias ao governo do império e à europeização da corte nos trópicos.

É nesse contexto que surgem instituições importantes como a Biblioteca Nacional, o Jardim Botânico e a Imprensa Régia e são criadas as escolas de cirurgia da Bahia e do Rio de Janeiro, que viabilizaram o processo de institucionalização da medicina no país.

Retrato de José Corrêa Picanço (1745-1824), cirurgião-mor do reino que acompanhou a família real na sua vinda para o Brasil e ajudou a fundar a Escola de Cirurgia da Bahia. Óleo sobre tela de pintor não identificado.

Até o princípio de século 19, as práticas de cura na América portuguesa eram realizadas por diferentes personagens ligados a esse tipo de exercício. Cirurgiões barbeiros, boticários, sangradores, curandeiros e feiticeiros ocupavam o espaço aberto pela falta de médicos, que eram uma raridade na colônia. Salvo exceções, os poucos que ali exerciam o ofício tinham pouco prestígio e conhecimento.

A escassez desses profissionais no vasto território português na América tornou-se uma das preocupações do príncipe regente, D. João VI. Assim, uma de suas primeiras medidas após a chegada da corte à colônia foi criar um curso de formação de cirurgiões. Em sua passagem por Salvador, fundou, por meio da carta régia de 18 de fevereiro de 1808, a Escola de Cirurgia da Bahia, sob orientação de José Corrêa Picanço (1745-1824), cirurgião-mor do reino que acompanhava a família real no ‘exílio’.

A escola foi instalada no Hospital Real Militar da capital baiana e oferecia, no início de suas atividades, apenas duas disciplinas: Cirurgia especulativa e prática e Anatomia e operações cirúrgicas. O curso funcionou nesses moldes até 1815, quando foi transferido para a Santa Casa de Misericórdia e transformado em Academia Médico-Cirúrgica da Bahia por ocasião da primeira reorganização do ensino médico.

O marco de fundação da Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro foi, segundo o historiador da medicina Lycurgo de Castro Santos Filho, a nomeação do cirurgião Joaquim da Rocha Mazarém (1775-1849) para a cadeira de anatomia no Hospital Militar da corte em 2 de abril de 1808.

Por meio de decretos do príncipe regente, foram criadas novas disciplinas, como terapêutica cirúrgica e particular, ministrada pelo cirurgião José Lemos de Magalhães, e medicina clínica, teórica e prática e princípios elementares de farmacêutica, a cargo do médico José Maria Bomtempo (1774-1843), antigo físico-mor de Angola, autor de substanciosa bibliografia sobre a medicina de sua época.

Reorganização
Em 1813, as escolas cirúrgicas foram reorganizadas segundo o projeto do Dr. Manoel Luis Álvaro de Carvalho (1751-1825), médico da Real Câmara e diretor dos Estudos Médicos e Cirúrgicos da Corte e do Brasil. O plano preconizava a fundação de três academias médico-cirúrgicas: uma na Bahia, outra no Rio de Janeiro e uma terceira no Maranhão. Esta última não chegou a ser criada. No Rio, a academia instalou-se no mesmo ano; na Bahia, apenas em 1815.

Vista aérea do antigo prédio da Faculdade Nacional de Medicina, na Praia Vermelha, Rio de Janeiro, tirada em 1969 do bondinho do Pão de Açúcar, cujo cabo aparece na foto. O prédio inaugurado em 1918 recebeu acréscimo de dois andares no início dos anos 1940. Essa reforma, considerada por muitos uma agressão ao projeto original, foi objeto de intensa polêmica. O conjunto foi demolido no início dos anos 1970 (foto: Fundo Correio da Manhã / Arquivo Nacional).

Com as reformas, para matricular-se no primeiro ano do curso, o candidato a cirurgião deveria apenas ler e escrever correntemente. Quanto a outras línguas, recomendava-se: “Bom será que entendam as línguas francesa e inglesa”. O plano, que recebeu o jocoso apelido de ‘Bom será’, ampliou o período de estudos para cinco anos e criou uma nova possibilidade para os futuros cirurgiões. A conclusão do curso conferia aos estudantes a carta de ‘cirurgião aprovado’. Os bons alunos que desejassem cursar novamente as disciplinas do 4o e 5o ano receberiam a carta de ‘cirurgião formado’.

Havia uma grande diferença no campo das atribuições profissionais. Um ‘cirurgião aprovado’ poderia atuar somente no campo da cirurgia, ou seja, realizar sangrias, aplicar ventosas, curar fraturas, contusões e feridas. Já um ‘cirurgião formado’ poderia praticar curas de cirurgia e também praticar a medicina, podendo tratar de todas as enfermidades nos locais onde não existissem médicos diplomados por faculdades européias.

É notável o cuidado com a formação de profissionais autorizados a praticar a medicina, devido à enorme carência de ‘físicos’ e cirurgiões no Brasil. Assim, mesmo após a formação das escolas de cirurgia e a criação de medidas para institucionalizar e controlar a prática da medicina, um amplo espaço era ocupado por outros ‘curadores’, que lenta e sistematicamente iam sendo lançados à categoria de ‘charlatães’.

Apesar das reformas e da reorganização das academias em 1813 e 1820, as condições de ensino eram muito precárias e ineficientes. Eram freqüentes as queixas sobre a falta de um local apropriado para as aulas, carência de utensílios, livros e outros recursos. No Rio de Janeiro reclamava-se ainda da falta de apoio oficial e da pouca assiduidade dos professores.

Silvio Cezar de Souza Lima
Programa de Pós-graduação em História das Ciências da Saúde (doutorando),
Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz (RJ) 

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