A pergunta ‘quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha’ não é tão interessante quanto esta: o que surgiu antes, as proteínas ou os ácidos nucleicos (DNA e RNA)? Para a primeira, já há uma resposta. Para a segunda, não. 

Os advogados do mundo do ácido ribonucleico (RNA) alegam que este deu o ‘chute inicial’, por ser uma molécula muito versátil. Além de armazenar informação genética, o RNA exibe, em algumas espécies, atividade enzimática, função que em geral cabe às proteínas. O RNA com esse papel duplo foi chamado de ribozima, em 1982, pelo bioquímico norte-americano Thomas Cech, que descobriu essa propriedade.

Há, porém, alguns problemas com a hipótese do mundo do RNA. O primeiro é que a atividade enzimática da ribozima está associada à sua ação como transportador da informação genética, isto é, essa propriedade já seria uma especialização funcional, um ‘acessório’ integrado ao sistema de transcrição da informação genética contida no DNA. Ao que consta, a ribozima faria só isso. Essa propriedade é diferente da mostrada pelas enzimas protéicas, que promovem a catálise de modo melhor e mais variado.

O segundo problema é que não há ribozimas nos organismos procariotos (sem núcleo), que antecederam os eucariotos e viviam muito bem (e ainda vivem) com seu RNA sem atividade enzimática. O terceiro problema diz respeito à síntese do RNA em um cenário primitivo. Mesmo com os recursos dos laboratórios atuais, a síntese do RNA não é tarefa trivial, pois exige condições muito especiais.

Entretanto, recentemente, um grupo de pesquisa da Inglaterra propôs uma estratégia de síntese de RNA que poderia ocorrer no cenário da Terra primitiva, usando como substâncias precursoras o glicolaldeído e o gliceraldeído. Os pesquisadores conseguiram produzir os ribonucleotídeos (compostos que, unidos em longa cadeia, constituem o RNA) com boa eficiência. Mesmo assim, concluíram que, para tornar possível a síntese do RNA, seria necessário que a Terra primitiva tivesse fontes de glicolaldeído e de gliceraldeído, o que não ajuda muito a causa da primazia do RNA.

Carona em asteroides e cometas

Cometa Hale-Bopp fotografado em 1997. Aminoácidos provavelmente chegaram à Terra de carona em objetos como asteroides e cometas. Seu aquecimento em fontes termais pode ter criado os proteinoides que teriam precedido os ácidos nucleicos (foto: Philipp Salzgeber).

Sidney Fox (1912-1998), outro bioquímico dos Estados Unidos, realizou em 1965 experimentos em que aminoácidos, aquecidos a temperaturas entre 150oC e 200oC, produziram proteinoides (semelhantes às proteínas modernas) que não só formam compartimentos, as microesferas, como exibem propriedades catalíticas variadas.

É mais fácil então escolher, pelo princípio da parcimônia, o modelo mais simples: os proteinoides se formaram por aquecimento, em fontes termais que continham aminoácidos já existentes na crosta terrestre.

Aminoácidos, como já comentado na coluna (ver ‘Entrega em domicílio’, na CH 220), provavelmente chegaram à Terra de carona em objetos como asteroides e cometas. Admitindo que os proteinoides precederam os ácidos nucleicos, é possível propor que os primeiros, em algum momento, catalisaram a formação de nucleotídeos e, mais tarde, dos polímeros RNA e DNA.

Cabe, agora, a pergunta: é possível a vida sem DNA e RNA? Basta olharmos para as hemácias: essas células sem núcleo e sem ácidos nucleicos vivem por cerca de 120 dias no sangue humano, mantendo eficientemente várias reações metabólicas e transportando gases para lá e para cá. É verdade que as hemácias são programadas para morrer, mas, enquanto estão ativas, exibem as características de células vivas, exceto o crescimento e a reprodução. Seriam assim os protobiontes, formados por um conjunto de proteínas primitivas, compondo um metabolismo rudimentar? E somente mais tarde teriam catalisado a formação moléculas semelhantes ao DNA moderno?

Só conseguiremos as respostas quando determinarmos em que momento os ácidos nucleicos foram ‘inventados’ e adotados pelas células. Infelizmente, não existem fósseis de polímeros, que permitam tal análise, mas talvez se possa especular sobre quando isso aconteceu. Quem sabe se, calculando a correlação entre a antiguidade de certas espécies e o tamanho de seus genomas, seria possível, em um gráfico, gerar uma curva cuja interseção com o eixo das idades dos organismos revelasse quando o DNA surgiu e se existiram na Terra organismos sem ele?

Franklin Rumjanek
Instituto de Bioquímica Médica,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
[email protected]

 

Outros conteúdos desta edição

Outros conteúdos nesta categoria

614_256 att-22975
614_256 att-22985
614_256 att-22993
614_256 att-22995
614_256 att-22987
614_256 att-22991
614_256 att-22989
614_256 att-22999
614_256 att-22983
614_256 att-22997
614_256 att-22963
614_256 att-22937
614_256 att-22931
614_256 att-22965
614_256 att-23039