Por serem consideradas as fábricas de energia das células e possuírem um material genético próprio, as mitocôndrias são organelas celulares que vêm sendo cada vez mais estudadas. As pesquisas dos genomas mitocondriais têm permitido compreender, de modo mais claro, as relações de ancestralidade entre populações, espécies e grandes grupos animais. Análises computacionais desses dados genômicos têm contribuído também para elucidar a história evolutiva de populações e suas dispersões pelo globo. Os chamados mitogenomas têm sido usados até para realizar diagnósticos moleculares de pragas veterinárias e para identificar fraudes em mercados. Essas importantes organelas continuam nos surpreendendo!
Essas organelas comumente conhecidas como a central energética das células foram descobertas em 1890, quando o patologista e histologista alemão Richard Altmann (1852-1900) desenvolveu um novo método para fixar tecidos que seriam posteriormente analisados ao microscópio. Altmann foi capaz de observar estruturas intracelulares em forma de filamentos, às quais chamou de bioblastos.
Nove anos depois, usando outro corante, o também alemão Carl Benda (1857-1932) estudou esses bioblastos e verificou que eles poderiam ser encontrados em duas formas diferentes: filamentos trançados ou grânulos. Foi aí que ele cunhou o termo ‘mitocôndria’, a partir das palavras mitos (filamento) e chondros (grânulo).
Tanto Altmann quanto o botânico russo Konstantin Mereschkowski (1855-1921) tinham originalmente proposto que as mitocôndrias poderiam ser organismos simbiontes. Esses dados produzidos perto da virada do século 20 estavam esquecidos até que a bióloga evolutiva estadunidense Lynn Margulis (1938-2011) publicou, em 1967, um trabalho intitulado ‘On the origin of mitosing cells’ (em tradução livre, ‘Sobre a origem das células mitóticas’). Até a sua publicação final no periódico científico Journal of Theoretical Biology, esse clássico artigo científico (citado 1.211 vezes, de acordo com o Google Scholar) fora rejeitado por 15 outras revistas!
Reza a lenda que, em uma das maiores provas históricas do machismo na área acadêmica, um dos revisores que rejeitou o trabalho de Margulis chegou a dizer que ela deveria desistir da vida acadêmica e se preocupar em lavar pratos. Lynn Margulis assina o artigo de 1967 como Lynn Sagan, já que ela havia sido casada com o astrônomo Carl Sagan (1934-1996), do qual veio a se separar naquele mesmo ano. O casal, mesmo separado, provou ter uma importância fundamental para a divulgação do conhecimento científico em nível mundial.
Margulis desenvolveu e aprofundou o estudo das relações simbióticas entre os seres vivos, defendendo publicamente o darwinismo em diversas situações. Segundo ela, a seleção natural atuava principalmente no que chamamos de seleção negativa, ao impedir que organismos não adaptados se reproduzissem. O grande motor da evolução seriam a simbiose e o mutualismo! O mutualismo é a relação ecológica na qual duas entidades colaboram para benefício de ambas.
Daí surge a pergunta de se o mutualismo seria capaz de produzir padrões emergentes que chegariam a resultar nas grandes novidades evolutivas. Para Margulis, possivelmente sim, já que o ‘todo’ produzido por esse tipo de relação seria maior do que a soma das partes individuais que a compõem; e o mutualismo seria, a seu ver, o principal mecanismo de mudança evolutiva. A simbiose também seria um desses mecanismos; porém, nesses casos, os organismos que compartilham tal relação deveriam viver juntos.
Nesse contexto, Margulis propôs a teoria endossimbiótica para a origem das organelas celulares, sugerindo que as mitocôndrias (e também os cloroplastos) deveriam ter sido, no passado, bactérias de vida livre que teriam sido engolfadas por células eucarióticas. Essas bactérias teriam passado a viver em harmonia com as outras células, trocando substâncias e metabólitos para o benefício de ambas. Embora sua teoria tenha sido ignorada e desconsiderada pelos cientistas da época, um trabalho publicado na prestigiosa revista Science, quase 10 anos depois, demonstrou experimentalmente que sua teoria era verdadeira.
Junto com o biofísico britânico James Lovelock, Margulis defendia ainda a chamada ‘hipótese Gaia’, que propunha que a Terra deveria ser considerada um macro-organismo. Essa ideia sugeria que os padrões observados nas ciências biológicas poderiam ser entendidos de forma fractal (figura da geometria não euclidiana, que se repete em diferentes dimensões). Partindo das células, tecidos, organismos, populações, espécies, comunidades, ecossistemas, biomas e, finalmente, Gaia (o planeta), os padrões da biologia se repetiriam de forma autossimilar em diferentes níveis e, para cada nível, a importância do mutualismo e da simbiose se mostrariam de diferentes modos.
Uma das primeiras provas de que as mitocôndrias foram bactérias no passado consistia no fato de que elas apresentam um genoma próprio (figura 1). Além disso, as mitocôndrias têm também uma membrana dupla e ribossomos do tipo bacterianos. Entretanto, o genoma mitocondrial é bastante reduzido. Enquanto uma bactéria contém normalmente milhares de genes codificados em seus genomas, as mitocôndrias animais apresentam por volta de 37 genes. Essa incrível redução genômica observada nessas organelas acabou sendo reconhecida como um evento derivado da endossimbiose. Uma vez que dois organismos estabelecem uma relação dessa natureza, eles não precisam manter todas as funções que necessitavam antes, quando viviam ‘sozinhos’.
Especula-se que alguns genes mitocondriais poderiam ter sido transferidos para o núcleo da célula hospedeira e que a seleção natural, operando dentro das células, tenha atuado de forma a tornar a mitocôndria uma máquina molecular altamente especializada. Não sabemos ao certo como teria evoluído essa interação entre as proteínas mitocondriais e as proteínas produzidas pela célula hospedeira. Por isso, uma descrição detalhada sobre como esse evento de simbiose intracelular teria acontecido é um tema de pesquisa interessante e ainda bastante ignorado pelos cientistas.
Como dissemos anteriormente, as mitocôndrias têm um papel essencial na transformação de energia nas células eucarióticas, já que elas se especializaram na função de sintetizar ATP (adenosina trifosfato), molécula que contém três grupos fosforil, cuja quebra libera a energia usada por diversas enzimas celulares para a realização de trabalho (como no caso da contração muscular), o transporte de íons e a síntese das biomoléculas que formam as células e os organismos. Se as analogias comuns sugerem que a ATP deva ser considerada como a moeda de troca química da célula, a mitocôndria poderia ser considerada como a Casa da Moeda.
É interessante notar, entretanto, que a ATP é também um nucleotídeo que constitui o RNA (ácido ribonucleico). De fato, a ATP é a letra ‘A’ na linguagem dos ácidos nucleicos, pois contém a base nitrogenada de adenina. Dessa forma, esse nucleotídeo é usado em enorme quantidade dentro da célula para a produção de RNAs durante a transcrição. Parece incrível notar como a função fundamental da mitocôndria na produção de nucleotídeos (e, portanto, na regulação da transcrição) tem sido negligenciada. Acredito que, em um futuro próximo, encontraremos também mitocôndrias alternativas que produzirão os outros nucleotídeos de RNA, como o GTP, CTP e UTP. Também parece possível que a ciência venha a descobrir que um ancestral antigo das mitocôndrias tenha tido uma importância vital durante a evolução precoce da vida na Terra, ainda antes de as células terem se originado.
As teorias mais modernas sobre as origens da vida, como as do mundo do RNA ou do mundo do RNP, têm dificuldades em explicar como os nucleotídeos surgiram na Terra primitiva. Assim, é bastante possível que algum tipo de máquina molecular produtora de nucleotídeos tenha se originado muito cedo na história da vida. Embora essa ideia ainda seja especulativa, ela pode vir a se mostrar verdadeira.
Já foi dito aqui que os genomas mitocondriais de animais contêm em geral 37 genes (figura 2). Mas que genes são esses? Dois deles codificam RNAs ribossômicos, que serão importantes na montagem dos ribossomos mitocondriais. Por ser uma organela com membrana, a mitocôndria possui um lúmen, que equivale ao citoplasma dessa organela e é onde as reações químicas mitocondriais acontecem; inclusive a tradução de seus genes em proteínas.
Para que essa tradução dos genes mitocondriais aconteça, é preciso que existam também os RNAs transportadores, responsáveis por trazer cada aminoácido ao ribossomo, realizando a decodificação do código genético e permitindo a montagem das proteínas mitocondriais, aminoácido por aminoácido. Dentre os 37 genes codificados no genoma mitocondrial, 22 vão produzir RNAs transportadores, sendo um para cada um dos 20 aminoácidos, com exceção da leucina e serina, que contêm dois RNAs transportadores.
Se, dos 37 genes, dois codificam RNAs ribossômicos e 22 codificam RNAs transportadores, restam 13 genes. Esses, sim, são responsáveis por produzir as proteínas mitocondriais. Todas as proteínas codificadas pelo genoma mitocondrial estão envolvidas no processo de síntese de nucleotídeos trifosfato. Essas proteínas são compostas de sete subunidades da enzima conhecida como NADH desidrogenase. A NADH desidrogenase consiste no chamado complexo 1 do sistema de transporte de elétrons, responsável pelo processo de fosforilação oxidativa, que é um dos principais mecanismos de síntese de ATP celular. Nos mamíferos, esse complexo enzimático é formado por cerca de 40 proteínas, sete das quais estão presentes no genoma mitocondrial, sendo as outras codificadas pelo genoma nuclear e, posteriormente, endereçadas para a mitocôndria. Assim, o genoma mitocondrial codifica as subunidades 1, 2, 3, 4, 4L, 5 e 6 desse complexo enzimático.
Além desses sete genes para a NADH desidrogenase, a mitocôndria produz também três genes que formam unidades da enzima citocromo oxidase, ou complexo IV, que também faz parte do sistema de transporte de elétrons na mitocôndria, catalisando a transformação de uma molécula de O2 em duas moléculas de água, por meio da oxidação de quatro moléculas de citocromo C.
Outros dois genes do genoma mitocondrial produzem proteínas que vão formar duas subunidades da enzima ATP sintase, mais especificamente suas subunidades de número 6 e 8. A ATP sintase é uma das enzimas mais complexas conhecidas e forma uma estrutura transmembrana por onde passa um fluxo de prótons que promove o movimento de um tipo de roleta molecular, catalisando a síntese de ATP.
O último gene mitocondrial, o citocromo B, também faz parte da cadeia respiratória e é um dos componentes do complexo III, conhecido como ubiquinol-citocromo c redutase.
Estudos de sequenciamento de genomas mitocondriais são importantes em múltiplos aspectos e têm permitido aos cientistas compreender, de forma cada vez mais clara, as relações de ancestralidade entre populações, espécies e grandes grupos animais existentes em nosso planeta (figura 3).
Como as mitocôndrias têm um genoma razoavelmente pequeno – com cerca de 16 mil nucleotídeos em vertebrados –, a montagem, anotação e o estudo filogenômico mitocondrial podem ser feitos até por estudantes de graduação, desde que acompanhados por professores ou alunos mais experientes. Em nosso laboratório, temos usado mitogenomas animais como um recurso didático eficiente para que os alunos aprendam a lidar com dados de genômica, genômica comparativa, evolução molecular e bioinformática.
O estudo da herança mitocondrial em humanos tem permitido conhecer nossas origens, nossa ancestralidade e os mecanismos de dispersão que os humanos têm usado para se locomover ao longo do globo terrestre desde que nossa espécie se originou centenas de milhares de anos atrás, possivelmente no continente africano. Hoje, milhões de mitogenomas humanos são conhecidos para as mais diferentes populações e muitas empresas vendem serviços que permitem traçar a ancestralidade genética de qualquer pessoa interessada.
A herança mitocondrial se dá por via materna pelo fato de que somente os óvulos contêm mitocôndrias. Exceto em casos de doenças raras, que começaram a ser desvendados em 2018, os espermatozoides contêm mitocôndrias apenas em suas caudas, que não entram no óvulo no momento da fecundação. É por isso que as minhas mitocôndrias são iguais às da minha mãe; e as dela, iguais à da minha avó, bisavó, tataravó… e assim por diante.
Estudos matemáticos sugerem a existência ancestral de sete grandes grupos (haplogrupos) de matrilinhagens em humanos, cada um apresentando determinadas mutações específicas que identificam sua herança (figura 4). Assim, estudos de genealogia genética podem revelar qual a porcentagem de ancestralidade materna de cada um dos grandes grupos genéticos humanos: os africanos, os ameríndios, os europeus e os asiáticos.
Pesquisas interessantes têm demonstrado a contribuição genética dos negros brasileiros a partir de diferentes povos africanos, assim como dos brancos a partir de ancestrais oriundos de diferentes partes da Europa e também de muitos grupos indígenas. Além disso, o genoma mitocondrial foi importante para descobrir e identificar uma importante introgressão (fluxo de genes) de DNA neandertal em nossos genomas de Homo sapiens, provando a existência de híbridos entre essas espécies de hominíneos.
Dada a importância da mitocôndria para os processos de conversão de energia celular, é interessante notar, do ponto de vista da cultura pop, que o filme de 1999 A ameaça fantasma, da série Star Wars, propôs que os cavaleiros Jedis apresentavam simbiontes em suas células que seriam capazes de conectá-los com ‘a Força’. Depois disso, muitos blogues na internet sugeriram que esses simbiontes, chamados de midi-chlorians, seriam mitocôndrias modificadas!
Do lado científico, genes mitocondriais como os que codificam o citocromo B e a Subunidade I da citocromo oxidase foram alguns dos primeiros marcadores genéticos usados para traçarmos a história evolutiva de muitas espécies. Esses estudos revelaram relações de ancestralidade e de grupos-irmãos entre diferentes grupos de organismos. Pesquisas sobre as sequências genômicas de outras partes da mitocôndria, como a região hipervariável conhecida como D-loop, têm nos permitido entender a dispersão das populações e suas migrações ocorridas no passado.
Embora o potencial informativo do genoma mitocondrial seja enorme e já tenha sido explorado de inúmeras maneiras pelos evolucionistas e geneticistas, já está claro hoje que as histórias evolutivas dos organismos podem ser mais bem compreendidas ao usarmos os genomas completos ou mesmo uma mistura de genes mitocondriais e nucleares. Só assim podemos obter informações mais confiáveis sobre a história natural da vida em nosso planeta e suas interrelações na árvore da vida.
Os estudos de genomas mitocondriais continuam sendo extremamente úteis para nos revelar padrões preliminares de ancestralidade entre espécies e, principalmente, entre grandes grupos de organismos em nível de gêneros, famílias, classes e grupos taxonômicos ainda mais altos. Como um recurso genético razoavelmente barato de ser produzido e que não necessita de tanto tempo para ser analisado, os genomas mitocondriais também têm contribuído para contar a história evolutiva de populações e suas dispersões pelo globo, por meio dos estudos na área da filogeografia.
Os mitogenomas também são usados para realizar diagnósticos moleculares de pragas veterinárias, servem para identificar inequivocamente determinadas espécies por meio da definição de códigos de barra moleculares – sendo empregados inclusive para identificar fraudes em mercados –, além de muitas outras aplicações. Finalmente, o estudo dos mitogenomas é um excelente recurso didático para formar pesquisadores na área da genômica, bioinformática e biologia evolutiva baseada em dados moleculares.
Francisco Prosdocimi
Instituto de Bioquímica Médica
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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