Mais do que resgatar a trajetória de um renomado cientista do século 20, o filme Kinsey – Vamos falar de sexo, de 2004 e dirigido por Bill Condon, aponta para vários elementos que, de um modo ou de outro, permeiam o universo científico. De um lado, está a representação de uma personagem que o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) identificaria, num determinado plano, como um cientista vocacionado. De outro, aparecem, em diversas passagens da película, ocorrências que corroboram a ideia, defendida por outro sociólogo, o francês Pierre Bourdieu (1930-2002), de que o campo científico, assim como qualquer outro campo social, goza de uma autonomia apenas relativa.

Charles Alfred Kinsey, interpretado por Liam Neeson, nasceu nos Estados Unidos em 1894 e, como retrata o filme, teve a infância e a juventude marcadas por uma série de tensões envolvendo família, religião e sexualidade. Estudou biologia contra a vontade de seu pai, doutorou-se em zoologia pela Universidade Harvard (EUA) e, mais à frente, tornou-se professor da Universidade de In- diana  (EUA), onde conheceu  Clara MacMillen, uma de suas alunas, representada por Laura Liney, com quem se casaria.

Ao explorar a incompatibilidade anatômico-sexual do casal, o qual casou-se virgem, o filme mostra como, justamente a partir de um problema de ordem pessoal, ao mesmo tempo em que se vê às voltas com um ambiente extremamente moralista e conservador com relação ao sexo, Kinsey dá início à sua busca por um desvendamento o mais científico possível dos mecanismos biológicos subjacentes à sexualidade humana. Do curso sobre sexo para jovens casais, na universidade onde trabalhava, aos grandes  inquéritos sobre a vida sexual dos norte-americanos, entre outras passagens, o que se vê é o retrato de um cientista infatigável, movido por uma paixão febril pelas respostas que, supostamente, a ciência pode oferecer aos problemas que aborda. Nesse aspecto, lá está o tripé paixão, dedicação e inspiração, considerados por Weber como os motores necessários à transformação de todo e qualquer indivíduo num cientista vocacionado.

Ciência como política 

Ao tomarmos Kinsey como um cientista vocacionado dentro dos moldes weberianos, com base na representação feita pelo longa-metragem, é necessário, contudo, cuidado. Isso porque, se, para Weber, a ciência não pode arrogar para si a pretensão de interferir moral e politicamente na esfera pública, posto que ela não dá garantias, em última instância, de que as verdades que gera são definitivas e universais, o que se vê no filme é justamente o contrário.  

De modo a barganhar o apoio financeiro da Fundação Rockfeller, Kinsey inicialmente abre mão de se enveredar por questões demasiado controversas para a sociedade de sua época, como o sadomasoquismo e a pornografia. Mas, mais à frente, com o sucesso obtido a partir do lançamento de seu primeiro relatório, O comportamento sexual no macho humano (1948), ele instrumentaliza seu prestígio científico com o intuito de reformar, jurídica e moralmente, a sociedade norte-americana no que tange a diversas condutas sexuais.

O relatório de Kinsey revelara, entre outras coisas, que boa parte dos homens norte-americanos se masturbava e praticava  sexo, hetero e homossexual, antes e fora do casamento

Uma cena em especial assinala essa virada. O relatório de Kinsey revelara, entre outras coisas, que boa parte dos homens norte-americanos se masturbava e praticava  sexo, hetero e homossexual, antes e fora do casamento. Tais práticas, naquele momento, eram tidas como criminosas em diversos estados. Por intermédio da imprensa, o cientista conclama a sociedade norte-americana a rever seu olhar sobre os crimes sexuais, e, consequentemente, sobre os presos sob tais acusações. Quando de sua chegada  a Nova York, para uma reunião  na Fundação  Rockfeller, ele diz aos repórteres: “A maior parte dos presos não têm nada em sua história que seja diferente do resto da população. (…) O pecado de todos não é de ninguém. E o crime de todos não é nem mesmo um crime.” Em outra cena, em uma palestra, Kinsey chega a afirmar que  a ciência mostrará o caminho para a superação das limitações morais e religiosas da sociedade de seu tempo, algo inconcebível para Weber.

Campo de disputas e disputas entre campos 

Essa e outras interferências  trazem, para Kinsey, consequências. Após a publicação de O comportamento sexual na fêmea humana (1954), ele experimenta um declínio público acentuado, e mesmo a sua autoridade científica é questionada. Aliás, um dos pontos interpretado por Liam Neeson em Vamos falar de sexo, Alfred Kinsey teve a infância e a juventudde marcadas por tensões familires mais interessantes do filme está justamente na forma como o diretor retrata aspectos psicológicos, sociais, políticos e econômicos relacionados ao fazer científico.

Em um plano, temos o jogo de forças interno ao campo científico nos moldes previstos por Bourdieu, em que os pares-concorrentes disputam, entre outras coisas, a aquisição de capital simbólico de modo a legitimar suas proposições. No filme, isso está particularmente evidenciado na disputa que Kinsey trava com a medicina de sua época, personificada no professor Thurman Rice, interpretado por Tim Curry. Em outro nível, vemos a interpenetração de diversos domínios sociais, os quais, também de acordo com Bourdieu, lutam para manter um mínimo de autonomia. Há dois momentos marcantes quanto a esse aspecto. Em um deles, Kinsey fica sabendo que, para além das críticas feitas aos seus métodos estatísticos, o governo quer que ele utilize sua expertise para identificar políticos e funcionários homossexuais, ao passo que o FBI (agência norte-americana de investigação) estaria elaborando  dossiês sobre ele. Em outro momento, a Fundação Rockfeller é pressionada, publicamente, a retirar o apoio financeiro às pesquisas de Kinsey, sob a acusação de que os estudos sobre o sexo seriam uma forma de fomentar  a ideologia comunista dentro dos Estados Unidos.

Outro aspecto explorado pela película de Bill Condon é a maneira como a vida pessoal de Kinsey se entrecruza com as suas atividades de cientista

Outro aspecto explorado pela película de Bill Condon é a maneira como a vida pessoal de Kinsey se entrecruza com as suas atividades de cientista. O destaque vai para o seu envolvimento sexual com um de seus alunos, outros membros de sua equipe de pesquisa e suas respectivas esposas e, supõe-se, voluntários do projeto. Estaria Alfred Kinsey instrumentalizando a ciência para legitimar suas aspirações sexuais perante a sociedade? Com que grau de objetividade ele efetuou suas pesquisas? São questões  que não passam despercebidas pelo expectador mais atento.

É fato que seus estudos impactaram sobremaneira o modo como a ciência e a política ocidentais passaram a encarar a variabilidade sexual humana a partir da segunda metade do século passado. Dos primeiros movimentos civis na luta pelos direitos das minorias sexuais à descriminalização de diversas práticas, o nome de Kinsey foi e continua sendo evocado. E talvez seja esse o recado maior a ser dado por esta cinebiografia – o de que é preciso ter em mente que as fronteiras que supostamente separariam a ciência de outros domínios são bastante tênues, de tal modo que os homens de ciência, como quaisquer outros, a exemplo de Kinsey, são seres situados social, cultural e politicamente no tempo e no espaço. Assim sendo, talvez a tão propalada neutralidade científica não passe de uma quimera.

Verlan Valle Gaspar Neto 
Departamento de Ciências Humanas, 
Universidade Federal de Alfenas

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