Não, não se trata de peça autocongratulatória, a convidar o leitor a comemorar três décadas, cumpridas em julho de 2012, de existência e de trabalho do Instituto Ciência Hoje. Não faltariam razões para tal, uma delas sendo a própria marca em si mesma, em um país no qual a maior parte das iniciativas no campo da cultura e do pensamento tem vida curta. No entanto, mais apropriado para esta coluna, que lida com o âmbito das humanidades, parece ser refletir a respeito disso tudo, mais do que comemorar.
A revista Ciência Hoje nasceu em 1982, ainda na vigência do estado de exceção implantado no Brasil em 1964. Não se pode dizer que tenha sido coincidência. Na verdade, desde o início, a revista devotada à divulgação científica esteve vinculada ao clamor pela redemocratização: seus idealizadores – todos pesquisadores consagrados – acrescentaram às identidades profissionais a disposição para a militância cívica.
Em grande medida, a persona do cientista como dotado de uma dimensão pública, e não apenas laboratorial ou reflexiva, ali esteve presente. Não sendo um projeto político-partidário, em sentido estrito, a revista tinha inequívoca marca política. Algo nítido em suas duas orientações maiores: pugnar pela democracia no país e pela democratização do acesso ao conhecimento científico.
Foram tempos heroicos, tanto pela tensão política então vivida quanto pelo escasso apelo do tema da divulgação científica. Em grande medida, o projeto foi obrigado a inventar o próprio caminho, diante do imponderável dos riscos – os políticos e os de sustentabilidade do próprio empreendimento.
Trinta anos depois, a passagem do tempo pode sugerir que o heroísmo de antes se apresenta agora consolidado em rotinas bem estabelecidas. Em outros termos, para parafrasear o antropólogo Gilberto Freyre, teríamos passado da ‘aventura’ para a ‘rotina’. Não apenas teríamos ao dispor um modelo já pronto e testado de como fazer divulgação científica, como a própria questão da democracia já estaria resolvida, por sua suposta consolidação no país.
Temo que as duas suposições sejam falsas. Antes de tudo, os desafios inerentes à divulgação científica não são desprezíveis: compatibilizar qualidade e originalidade de conteúdo com apresentação em textos tão claros quanto possível; tornar o complexo de algum modo inteligível; exibir do modo mais aberto a ‘cozinha’ do trabalho científico, mostrando o quanto este tem de hipotético e falível e, ainda assim, indispensável. Além de fazê-lo em um país que lê cada vez menos e em contexto hostil ao pensamento e à reflexão não midiática e instantânea.
O maior dos equívocos, no entanto, vem da suposição de que ‘atingimos’ a democracia, como se esta fosse um estágio fixo, conquistável por técnicas apropriadas de alpinismo. O que cientistas políticos conservadores chamam de ‘consolidação’ da democracia depende da presença e da operação de instituições estáveis e da vigência de leis.
É inegável que o país percorreu um caminho consistente em ambas as direções: se comparado com períodos precedentes, o Brasil atual dispõe de um quadro institucional e constitucional regular a acolher os princípios fundamentais do estado de direito.
O aspecto ausente nessa avaliação diz respeito à necessidade de pressão cívica por democracia. Esta não é um estágio, mas um processo, cuja extensão e profundidade dependerá da qualidade e da persistência das exigências dos cidadãos. Em termos mais diretos: a qualidade da democracia é afetada pela qualidade da demanda por democracia.
Esta, por sua vez, exige qualificação cívica, acesso à informação e à reflexão independentes. A cultura da ciência – toda e qualquer ciência – é imprescindível para a afirmação de sujeitos independentes e dotados de juízo crítico. A democracia deve cuidar do estômago, mas deve ser cuidada pelo pensamento.
Renato Lessa
Departamento de Ciência Política, Universidade Federal Fluminense
Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa
Texto originalmente publicado na CH 294 (julho de 2012).