A intrigante assimetria da vida

Instituto de Química
Universidade Federal do Rio de Janeiro

O papel surpreendente da quebra da simetria na “sopa primordial” da Terra

CRÉDITO: IMAGEM ADOBE STOCK

Popularmente associada à beleza, à perfeição e ao divino, a simetria é um conceito fundamental em diversas áreas das ciências e das artes. Por estar tão enraizada em nossa cultura e presente em objetos que permeiam o cotidiano, muitas vezes temos a impressão de que a natureza, em suas manifestações mais fundamentais, é composta por “coisas” simétricas e que a violação da simetria seria o caminho ao caos, ao feio e ao não-harmônico. Entretanto, ao estudarmos as biomoléculas, unidades essenciais à constituição dos seres vivos, percebemos que uma quebra de simetria foi, aparentemente, fundamental para o surgimento da vida.

Quiralidade?

Para seguirmos com esse tema, é preciso voltar à química básica e explicar o que é quiralidade. Uma molécula é quiral quando não é sobreponível à sua imagem no espelho. Utilizando um exemplo simples, coloque sua mão esquerda de frente para a sua mão direita. Você verá que uma é a imagem no espelho da outra. Porém, se você tentar sobrepô-las, verá que isso não é possível. Essas mãos seriam como moléculas quirais, e esse par é chamado de enantiômeros.

E o que isso tem a ver com “quebra de simetria”? De forma geral, quando produzimos moléculas quirais no laboratório, se não utilizarmos algumas estratégias específicas, obtemos uma mistura contendo ambos os enantiômeros na mesma proporção, ou seja, o processo ocorre de forma simétrica. Quando conseguimos um dos enantiômeros puro ou em grande excesso, temos um processo assimétrico. Ao olharmos para as moléculas fundamentais da vida, observamos que boa parte delas é encontrada na forma de um único enantiômero. Por exemplo, aminoácidos aparecem na natureza preferencialmente na forma L (L-enantiômeros), enquanto carboidratos na forma D (D-enantiômeros). Por algum motivo, a natureza, em nível molecular, optou pela assimetria.

Assimetria e a origem da vida

Em 1953, o estadunidense Stanley Miller (1930-2007) publicou um trabalho clássico intitulado, em tradução livre, “Produção de aminoácidos sob possíveis condições primitivas da Terra”. A proposta era simular um modelo da atmosfera da Terra antes do surgimento da vida (período pré-biótico), passando descargas elétricas, como se fossem raios, por uma mistura de gases. O cientista obteve uma mistura de diferentes aminoácidos encontrados na natureza, como a alanina e o ácido aspártico. No entanto, todos estavam na forma de uma mistura contendo ambos os enantiômeros (mão direita e esquerda!). Miller, assim, mostrou que biomoléculas poderiam ser obtidas a partir de substâncias muito simples, mas faltou o importante detalhe: não obteve apenas um dos enantiômeros, como observamos na natureza. 

Em outro experimento, o inglês John D. Sutherland, da Universidade de Manchester, demonstrou que é possível produzir RNA em condições pré-bióticas. O experimento reforça a hipótese, amplamente aceita na comunidade científica, de que esse ácido nucleico, com sua capacidade de autorreplicação, foi a molécula precursora da vida, precedendo o DNA na evolução dos sistemas biológicos. O experimento partiu de uma molécula (D-gliceraldeído) em sua forma enantiomericamente pura, ou seja, apenas um lado do espelho ou uma das mãos. 

Essa estratégia foi usada porque sabe-se que, a formação de estruturas mais complexas como os ácidos nucleicos, é significativamente inibida quando há misturas de dois enantiômeros. Ou seja, a assimetria (ou de forma mais específica, a quiralidade) parece ser um requisito essencial para o surgimento da vida. Esse fenômeno, conhecido como inibição cruzada entre enantiômeros, reforça a hipótese de que a assimetria já estava presente na chamada “sopa primordial” que deu origem à vida na Terra.

Eis que nos deparamos com um dos grandes dilemas da natureza: a vida, como a conhecemos, depende de uma quebra de simetria em nível molecular para existir. Por outro lado, experimentos que simulam a formação das moléculas da vida (como o de Miller) resultam em misturas de enantiômeros, ou indicam que tais misturas inibem a formação de estruturas funcionais, como ácidos nucleicos e proteínas. Existem hipóteses promissoras na literatura para explicar como essa simetria pode ter sido quebrada nas condições abióticas da Terra primitiva, e esse será um tema explorado futuramente neste espaço. 

No entanto, em contrafluxo ao senso comum, vale a reflexão: a vida, em suas bases moleculares, é assimétrica, irregular e, em certo sentido, até um pouco anárquica.

A vida, em suas bases moleculares, é assimétrica, irregular e, em certo sentido, até um pouco anárquica

Seu Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Outros conteúdos desta edição

725_480 att-94245
725_480 att-94376
725_480 att-94337
725_480 att-94428
725_480 att-94410
725_480 att-94382
725_480 att-94351
725_480 att-94370
725_480 att-94459
725_480 att-94208
725_480 att-94260
725_480 att-94504
725_480 att-94229
725_480 att-94316
725_480 att-94278

Outros conteúdos nesta categoria

725_480 att-96268
725_480 att-95218
725_480 att-93499
725_480 att-92573
725_480 att-91140
725_480 att-90107
725_480 att-88546
725_480 att-87716
725_480 att-86872
725_480 att-85894