A maior parte dos leitores deste artigo provavelmente se espantará ao saber que a maioria das células presentes em nosso organismo não é humana. Essa maioria não humana é encontrada nas comunidades microbianas riquíssimas que habitam nosso corpo. A existência dessas comunidades é conhecida desde que o holandês Antonie van Leeuwenhoek (1632-1723) observou, em um de seus microscópios, um raspado da superfície de seus dentes e descobriu um grande número de minúsculos seres vivos, com as mais variadas formas.
Nas últimas décadas, o estudo dos microrganismos que hospedamos cresceu vertiginosamente, dando origem a um novo campo da microbiologia. Desde então, essa comunidade amigável de minúsculos seres vem sendo chamada de microbiota (ou ainda flora, microflora e microbioma, entre outros nomes). Embora não a enxerguemos a olho nu, a microbiota é parte importante de nosso organismo. Estima-se, por exemplo, que mais da metade do material das fezes seja composto por células microbianas.
Calcula-se que, no corpo de um adulto, exista cerca de 1 kg de micróbios. O papel importante desses seres microscópicos fica ainda mais evidente quando comparamos o número de células humanas e microbianas no nosso corpo. Estimativas dizem que há 10 vezes mais micróbios em nossos corpos do que nossas próprias células. Em outras palavras, quanto ao número de células, somos 90% micróbios e apenas 10% humanos.
Mas a coisa não para por aí. Assim como os humanos, esses microrganismos também têm seus genes, que determinam como eles vivem e interagem com outros organismos. Se calcularmos o número de genes microbianos presentes em nosso corpo, chegamos à impressionante conclusão de que abrigamos 100 vezes mais genes microbianos do que humanos. Assim, em termos de número de genes, somos 99% micróbios e apenas 1% humanos.
Os microrganismos que vivem no corpo humano colonizam virtualmente todas as superfícies expostas ao ambiente externo. A microbiota está presente na boca, no estômago, no intestino, nos tratos genitourinário e respiratório, nos olhos, na pele etc. Embora esta se distribua por todas as áreas de contato com o exterior, a maior parte da colonização (cerca de 70%) ocorre no trato gastrointestinal.
Isso se deve em grande parte ao fato de a área das paredes intestinais de um adulto ser equivalente à de uma quadra de tênis – é, portanto, um imenso espaço para interações entre o tecido humano e os micróbios.
Essa associação começa cedo. No instante em que nasce, por parto normal, o bebê é colonizado por bactérias do canal vaginal da mãe. Já bebês que nascem por cesariana têm uma microbiota diferente, composta principalmente por micróbios da pele da mãe e dos profissionais de saúde envolvidos no parto. Após a colonização inicial, a comunidade microbiana do bebê é simples e instável. Entretanto, após o primeiro ano de vida, a composição desta se estabiliza e se torna semelhante à de um adulto. A partir daí, a microbiota continua evoluindo, mas de forma mais estável.
Além dessa variação no tempo, o conjunto de microrganismos também exibe grandes diferenças espaciais. No trato gastrointestinal, por exemplo, cada segmento do tubo digestivo tem micróbios relativamente específicos. No estômago, são comuns bactérias dos gêneros Lactobacillus, Veillonella e Helicobacter. No intestino delgado, predominam estreptococos, actinobactérias e corinebactérias. No intestino grosso, algumas das bactérias mais abundantes são os gêneros Bacteroides e Clostridium.
A composição microbiana no intestino também varia de acordo com a distância de cada microambiente em relação às paredes do tubo intestinal. A superfície do epitélio intestinal é, com poucas exceções, não colonizada. Já a camada de muco que recobre esse epitélio abriga bactérias características, como as dos gêneros Clostridium, Lactobacillus e Enterococcus. O espaço interno (lúmen) do trato gastrointestinal, por sua vez, é rico em outros gêneros (Bacteroides, Bifidobacterium), além de enterobactérias em geral. Esses padrões de colonização são influenciados por muitos aspectos, entre eles a distribuição de nutrientes e oxigênio, os níveis de acidez ou alcalinidade e a presença ou ausência de sítios específicos de ligação.
Papéis fundamentais
Todas essas observações deixam claro que as bactérias que colonizam o corpo humano devem exercer funções muito importantes. De fato, dezenas de estudos têm demonstrado que elas são fundamentais para a saúde. Grande parte desses estudos usou animais de laboratório, nos quais a microbiota foi de algum modo manipulada.
De início, camundongos eram tratados com antibióticos, que reduziam a níveis mínimos a população microbiana em seu intestino, e os efeitos desse tratamento eram registrados e investigados. Em seguida, foram desenvolvidos métodos mais sofisticados para o estudo da microbiota.
Camundongos paridos por cirurgia cesariana eram mantidos em condições totalmente assépticas, na ausência de qualquer tipo de microrganismo. Esses animais eram chamados de germ-free (livres de germes). Durante seu crescimento, em laboratório, diversos aspectos fisiológicos eram monitorados. Estudos como estes levaram à identificação de papéis fundamentais da comunidade microbiana na saúde dos animais (e, por extensão, na saúde humana).
Um exemplo é a função crítica da microbiota na proteção de seus hospedeiros contra a invasão por microrganismos causadores de doenças. Já era bem conhecida a maior incidência de infecções intestinais em indivíduos tratados com antibióticos. Um dos principais agentes dessas infecções é a bactéria Clostridium difficile, que causa a colite pseudomembranosa (inflamação do cólon que leva a diarreia e pode ser fatal). O surgimento dessa colite está associada ao uso de antibióticos de amplo espectro.
C. difficile pode ser encontrada na microbiota intestinal humana, e em geral não causa qualquer dano ao hospedeiro. No entanto, quando um antibiótico é usado para tratar uma infecção, esse conjunto de microrganismos é severamente alterado, o que propicia a expansão de C. difficile no intestino do hospedeiro. Como essa bactéria produz fatores de virulência, inclusive toxinas, o aumento de sua população desencadeia a colite pseudomembranosa.
Além dessas observações clínicas, estudos de laboratório, nas décadas de 1950 e 1960, confirmaram que o uso de antibióticos pode aumentar a sensibilidade a infecções intestinais. Camundongos tratados com estreptomicina, que apresentaram alterações drásticas na composição da microbiota intestinal, foram então infectados com a bactéria Salmonella, que causa gastroenterite em humanos, e os cientistas verificaram que os distúrbios na comunidade microbiana tornaram os animais muito mais suscetíveis à infecção por essa bactéria, assim como no caso de C. difficile.
Os mecanismos envolvidos na proteção gerada pela microbiota ainda são em grande parte desconhecidos. Acredita-se que essas bactérias funcionem como exímios competidores por nutrientes e sítios de ligação. As bactérias benéficas impediriam os agentes patogênicos de encontrar receptores e se ligar às células do intestino, levando à rápida eliminação destes. Além disso, a alta carga microbiana deixaria poucos nutrientes disponíveis para os agentes patogênicos que achassem um sítio de ligação. No entanto, muitos outros possíveis mecanismos são discutidos atualmente.
Luis Caetano Martha Antunes
Centro de Referência Professor Hélio Fraga
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca
Fundação Oswaldo Cruz