O suco do açaí produzido artesanalmente pode ser hoje um dos principais responsáveis por surtos da doença de Chagas no Brasil. Entre junho de 2006 e junho de 2007, 116 pessoas foram contaminadas após ingerirem a bebida nos estados do Amapá, Amazonas e Pará. A contaminação do suco acontece quando o inseto portador do protozoário que causa a doença é triturado junto com a fruta.
De acordo com o parasitologista Aldo Valente, do Instituto Evandro Chagas (IEC), órgão vinculado à Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, surtos da doença de Chagas transmitida por via oral acontecem desde 1968, mas havia uma subnotificação, decorrente sobretudo da desinformação. Agora, como as agências de saúde têm dado mais atenção ao tema, o número de casos registrados aumentou. Além disso, Valente lembra que o desequilíbrio ecológico causado pelo desmatamento afugenta os insetos de seu hábitat e de suas fontes alimentares naturais, contribuindo de maneira decisiva para a ocorrência dos surtos.
O principal problema trazido pela transmissão oral da doença de Chagas é que a ingestão coloca grande quantidade do protozoário causador da enfermidade, o Trypanossoma cruzi, na corrente sangüínea. Esse fato acarreta a redução do período de incubação da doença: enquanto na transmissão convencional os primeiros sintomas aparecem entre quatro e oito semanas após o contágio, na transmissão oral esse período se reduz para cerca de 10 dias e a doença pode rapidamente evoluir para suas formas mais graves.
Outra questão que preocupa a equipe do IEC é que o suco artesanal de açaí é muito consumido na região Norte do país, sendo, em alguns locais, como na bacia do Marajó (PA), mais consumido que o feijão com arroz. Valente explica que a contaminação dos frutos é acidental e se deve às condições precárias de sua manipulação. Os insetos, atraídos pela luz das casas próximas à mata, acabam caindo nas máquinas de despolpar os frutos, ou, atraídos pela luz de barcos atracados durante a noite, caem nas cestas onde o açaí é estocado. Como a coloração de ambos é similar, o reconhecimento da presença do barbeiro é difícil.
A separação cuidadosa dos frutos é uma das recomendações que o pesquisador faz para que a doença seja controlada. As outras são a atenção na colheita e a higienização dos locais de processamento, armazenamento e transporte do açaí. ”Essas informações devem ser passadas aos produtores em linguagem acessível. Falo para eles que devem catar o açaí como a dona de casa cata o arroz e o feijão.”
O Ministério Público e a Secretaria Estadual de Saúde entraram em ação para conter o avanço da doença e recentemente propuseram um Termo de Ajustamento de Conduta para as empresas produtoras do suco. Segundo Valente, desde 2000, as maiores empresas de exportação de açaí no Pará e Amapá, atendendo a orientação do IEC, já adotam a pasteurização e o congelamento prolongado – processos que eliminam o risco de contaminação. “Até hoje não registramos nenhum surto de doença de Chagas associado ao consumo de açaí industrializado fora da Amazônia”, afirma o pesquisador, que, no entanto, adverte que os compradores do açaí se certifiquem da idoneidade do seu fornecedor e cobrem dele a qualidade do produto.
A situação dos pequenos produtores, que atendem ao mercado local, no entanto, é outra, pois eles não têm recursos para a compra de pasteurizadores, e o congelamento, apesar de eficiente e de baixo custo, esbarra na resistência dos consumidores, que preferem o alimento recém-preparado. Um recente Termo de Ajuste de Conduta foi desenhado para esse segmento e já esta sendo aplicado. “Mas o IEC não foi consultado para a sua elaboração e não sabemos como se comportará”, afirma o parasitologista, acrescentando ser necessário “um trabalho de formiguinha, de parceria, baixo custo e alto impacto, que permita o convencimento e ofereça contrapartidas” para os pequenos comerciantes.
Doença negligenciada
Descrita pelo médico Carlos Chagas em 1909, a doença de Chagas é causada pelo Trypanosoma cruzi, protozoário que vive no trato digestivo de várias espécies de insetos da subfamília Triatominae, popularmente conhecidos como barbeiros. Na natureza, o ciclo de vida desse microrganismo restringe-se ao inseto e a animais silvestres, muitos deles de hábitos insetívoros – o barbeiro suga o sangue desses animais que, por sua vez, se alimentam do inseto.
O hábitat do barbeiro na região amazônica é a copa das palmeiras de grande porte, como babaçu, buriti, dendê e mucajá, entre outras. A palmeira do açaí não é habitada pelo inseto. Porém, nas antigas áreas endêmicas, com a ocupação humana, as frestas das paredes das casas de pau-a-pique, comuns nas áreas rurais, tornaram-se um bom abrigo para esses insetos, fazendo com que passassem a se alimentar também de sangue humano.
Como têm o hábito de defecar após picarem sua presa, os barbeiros liberam protozoários que entram na circulação sangüínea da vítima por meio do contato das fezes com o local da picada. Esse é o principal meio de contaminação humana, mas o contágio também pode ocorrer durante a gravidez (de mãe para filho), por transfusão de sangue e pela ingestão de alimentos contaminados. Essa forma de contaminação era tida como rara, mas os diversos surtos mostram sua relevância para a saúde pública.
Em junho de 2006, o Brasil recebeu da Organização Pan-americana da Saúde a Certificação Internacional de Eliminação da Transmissão da Doença de Chagas pelo Triatoma infestans – uma das espécies de barbeiro. Um ano antes ocorria, em Santa Catarina, um grande surto da doença por transmissão oral (ver ‘Em boca fechada…’ em CH no 215), – o segundo já registrado na região Sul em um intervalo de 40 anos. Na ocasião, cerca de 30 pessoas foram contaminadas e cinco morreram após beberem caldo de cana infectado com o protozoário.
A doença de Chagas só ocorre no continente americano, principalmente na América Latina, não tem vacina e a eficácia dos dois remédios existentes – somente um deles disponível no Brasil – é observada principalmente durante a fase aguda da enfermidade. A doença de Chagas faz parte do grupo das chamadas ‘doenças negligenciadas’ – moléstias que afetam milhares de pessoas, mas que não dispõem de tratamentos eficazes e que contam com poucas pesquisas em busca da cura.
Mariana Ferraz
Ciência Hoje/RJ