Bióloga e educadora científica brasileira, Ema Kuhn compartilha suas experiências de expedições às regiões polares e alerta para as consequências das mudanças climáticas que estão tornando esses ambientes extremos também para as espécies locais
Bióloga e educadora científica brasileira, Ema Kuhn compartilha suas experiências de expedições às regiões polares e alerta para as consequências das mudanças climáticas que estão tornando esses ambientes extremos também para as espécies locais
CRÉDITO: FOTOS ARQUIVO PESSOAL EMA KUHN
Foi de um barco em Svalbard, a cerca de 560 km da costa da Noruega, que a bióloga Ema Kuhn conversou com a CH sobre seu principal tema de estudo e de vida: as regiões polares. No quarto em que dormia há dois meses e meio durante uma expedição ao Ártico, havia mapas, publicações sobre ursos polares e baleias, um livro sobre Svalbard e outro da vegetação local – além de uma foto de Tuca, sua cachorrinha, do lado da cama. Apesar da distância e da saudade, é nos polos da Terra que Ema diz se sentir realmente em casa. “Desde a primeira vez, senti que era o meu lugar”, conta.
A escolha pela ciência como profissão aconteceu aos 13 anos, quando a bióloga leu e se impressionou com um artigo que falava sobre células bacterianas. Formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com mestrado pela Universidade de São Paulo (USP) e doutorado nos Estados Unidos, Ema especializou-se na vida em ambientes extremos de baixas temperaturas e já participou de várias expedições à Antártica e ao Ártico, colaborando com diversos programas de pesquisa. Hoje se dedica à educação e à divulgação científica em expedições e, também, palestras como as que ofereceu na Rio Innovation Week, evento realizado em agosto, no Rio de Janeiro. “Meu trabalho é mostrar quão importante é conservar os ambientes polares. Esses ambientes estão ficando extremos para a vida complexa que evoluiu e habita essas regiões, pelas mudanças causadas pelos seres humanos na Terra”, afirma, na entrevista a seguir.
CIÊNCIA HOJE: Quando fez sua primeira expedição para os polos da Terra e como é a rotina nessas incursões a ambientes de temperaturas extremamente frias?
EMA KUHN: Minha primeira experiência na Antártica foi em 2005, pela USP, como aluna de mestrado da dra. Vivian Pellizari, uma microbiologista muito conhecida no Brasil e no programa Antártico brasileiro. Chegamos numa madrugada em dezembro, passamos o dia na antiga Estação Comandante Ferraz, depois caminhamos até Punta Plaza, um pouco mais afastada da estação, e vi um pôr do sol. Foi bem marcante e entendi que ali era meu lugar. Considero a Antártica a minha casa, é onde minha vida tem sentido. Depois do mestrado, continuei por dois anos fazendo pesquisa junto ao Programa Antártico Brasileiro e, posteriormente, fui premiada com uma bolsa de doutorado Fulbright/CAPES para realizar meu doutoramento pleno nos Estados Unidos, no Desert Research Institute, em Nevada, e fiquei cinco anos associada ao programa antártico americano. Fui a primeira mulher brasileira e a terceira pessoa do Brasil a ir aos Vales Secos de McMurdo (na Antártica, uma das regiões mais extremas do mundo), onde realizei meus estudos. O fato de eu ser do Brasil gerava mais comentários do que a questão de ser mulher nesse mundo de pesquisa e trabalho. Sempre perguntavam: “Como assim uma brasileira na Antártica, se não tem nem neve no Brasil?”. Depois da temporada nos EUA voltei para um pós-doc com a dra. Vivian e o dr. Jefferson Simões, da UFRGS, no Criosfera 1, um dos módulos meteorológicos que o Brasil tem na Antártica. As experiências de pesquisa em campo são uma corrida contra dois tempos: o do relógio e do clima, porque, quando vem uma tempestade, é preciso parar tudo. Tem que ter preparação, logística. O Criosfera 1, por exemplo, ficava mais ou menos a 670 km do Polo Sul, e nossos vizinhos mais próximos estavam num acampamento a uns 300 km. Tinha que levar tudo, porque não havia como buscar nada em outro lugar.
CH: O que acontece com o corpo e a mente em ambientes como esses?
EK: É bem subjetivo. Nos acampamentos, cada um tem seus hábitos. Nas estações, principalmente, há controle de água. É preciso cuidar muito da parte de minerais e consumo de alimentos. No interior da Antártica, consumimos água do gelo de neve. É uma neve compactada, com pouquíssimos minerais. Então precisamos levar suplementos. Os costumes de higiene das equipes também variam. A pele descama muito pela falta de fricção da limpeza no banho. O aspecto psicológico também é bem particular. Eu sempre me senti à vontade na Antártica. Quando não estou lá é que tenho minhas crises, digamos, de voltar para a realidade do mundo. É preciso ser muito regrado em relação ao que é necessário fazer para vencer todas as etapas de pesquisa, a saudade da família e dos bichos de estimação. Às vezes não dá para se comunicar fora dali. Tanto que vários programas antárticos incluem testes psicológicos. É intenso, e eu amo esta intensidade.
CH: Quais são as diferenças de ocupação na Antártica e no Ártico? E como o avanço de inovações e tecnologia tem levado mais pessoas a essas regiões?
EK: Historicamente são ocupações diferentes porque o Ártico é um oceano rodeado por um continente. E ali estão todas essas populações da Sibéria (Rússia), do Canadá, da Groelândia (Dinamarca), Alasca (EUA) e de Svalbard (Noruega). povoando o Ártico há muito mais tempo do que a Antártica. A Antártica foi descoberta em 1820 e teve sua história escrita pelas eras heroicas e exploradores que tentavam ser os primeiros a passar um inverno, os primeiros a chegar no Polo Sul etc. A tecnologia avançou muito desde então, incluindo inovação nos materiais das roupas para aguentar as baixas temperaturas. A tecnologia de navegação também evoluiu muito além da geolocalização. Por exemplo, os navios estão muito mais adaptados para o extremo da tempestade de oceano, com estabilizadores, então não se sente tanto o balanço das ondas. Mas não há hoje um limite no uso dessas tecnologias, pensando na exploração da visitação, no turismo. No Ártico, cada país rege suas regras de conservação e impacto ao meio ambiente e estas regras estão mudando. A Noruega, por exemplo, a partir do verão do ano que vem, na época do nosso inverno no Brasil, usará regras de visitação muito mais rígidas para Svalbard. Os limites de aproximação a ursos polares serão mais restritos, as visitas a locais de nidificação (construção de ninhos) de pássaros serão encerradas. A Noruega tenta fazer isso para retomar a Svalbard de antes dos exploradores, dos baleeiros que vieram caçar baleias, renas, focas, ursos, raposas. Já a Antártica é regida por um órgão internacional sob o Tratado Antártico, em uma colaboração mundial para a imposição de normas e regras. É mais difícil chegar a um consenso de leis de preservação, principalmente de áreas marinhas. Hoje há um controle de como deve ser o comportamento de turismo na Antártica, ou quantas pessoas podem visitar cada local em determinado momento do dia, mas não existe a regularização de quantos navios ou pessoas no total podem estar na região ou quantos navios uma empresa de turismo pode ter. Depois da pandemia aumentou bastante o número de navios na Antártica, e o controle não. A IAATO (International Association of Antarctica Tour Operators) regulariza as regras de comportamento de empresas de turismo de visitantes na Antártica, mas não tem o poder de restringir o número total de navios ou visitantes na região, o que é preocupante.
A IAATO (International Association of Antarctica Tour Operators) regulariza as regras de comportamento de empresas de turismo de visitantes na Antártica, mas não tem o poder de restringir o número total de navios ou visitantes na região, o que é preocupante.
CH: Suas duas conferências no Rio Innovation Week abordaram a biodiversidade em risco com as mudanças climáticas, a vida extrema e os limites da existência nos polos da Terra. Como é a vida nesse contexto?
EK: Em regiões como a Antártica e o Ártico temos temperaturas de menos de 20 graus Celsius negativos e ambientes realmente extremos para os seres humanos. Mas existe vida nesses extremos, como microrganismos que vivem entre os cristais de gelo marinho. Então, não se trata só de falar de extremo de vida, mas das condições em que a vida pode existir no extremo de baixa temperatura do nosso planeta. E não só no nosso planeta. Meu background como cientista foi sempre em microbiologia e astrobiologia, e hoje trabalho com conservação e educação ambiental, explicando quão importante é preservar os ambientes polares. O curioso é que agora esses ambientes polares estão virando extremos para a vida complexa que evoluiu ali por causa das mudanças causadas pelos seres humanos na Terra. Os ursos polares, ícones do Ártico, e os pinguins, ícones da Antártica, estão perdendo o que precisam para manter o equilíbrio da população e sobreviver. Os ursos polares e as morsas evoluíram com o gelo marinho. É onde encontram a principal plataforma de descanso quando nadam nos oceanos e onde o urso polar encontra suas principais fontes de energia, que são as focas. E esses animais, que são os que mais se adaptam a estes locais extremos, muito extremos para nós, humanos, agora vivem em um ambiente também de extremos para eles.
O curioso é que agora esses ambientes polares estão virando extremos para a vida complexa que evoluiu ali por causa das mudanças causadas pelos seres humanos na Terra
CH: Que mudanças você nota em termos de paisagem, fauna, modo de vida, das primeiras expedições que você fez às mais recentes? E o que essas transformações nos dizem sobre os efeitos das mudanças climáticas nos polos da Terra?
EK: Dá para ver nitidamente, de um ano para outro, principalmente na retração de geleiras. Vou fazer 20 anos da minha primeira expedição no ano que vem. E hoje vejo atividades que fazíamos em baías que ficavam congeladas durante toda a temporada de verão e que hoje, no início de novembro, já não têm formação de gelo marinho. Quando há menos gelo marinho, há mais evaporação e mais precipitação. E com o aumento de temperatura há chuvas ocorrendo no verão, que não eram tão frequentes quanto hoje. E aí há situações como a dos filhotes de pinguins, que são adaptados para o frio, mas para o frio com neve, não para o frio úmido com chuva. Eles se molham e morrem de hipotermia. São essa e outras mudanças que podemos medir, comprovar cientificamente, e sabemos que são causadas pelos seres humanos e estão ocorrendo muito rapidamente. Nas minhas palestras, sempre falo de “a changing planet” (um planeta em transformação), porque quando falamos de aquecimento global ou mudanças climáticas as pessoas pensam num viés político. Existem mudanças naturais em curso no planeta, identificadas pelas medições históricas de temperatura e gases na Terra e nos oceanos, onde está boa parte da vida do nosso planeta. Sabemos também que por décadas essas mudanças estão sendo alteradas pelas ações humanas. O que ainda não sabemos é como fazer as pessoas mudarem de comportamento para diminuir o impacto da nossa existência neste planeta.
Há situações como a dos filhotes de pinguins, que são adaptados para o frio, mas para o frio com neve, não para o frio úmido com chuva. Eles se molham e morrem de hipotermia. São essa e outras mudanças que podemos medir, comprovar cientificamente
CH: Você trabalha com educação e divulgação científica em viagens de turismo de expedição, como a que está agora. Como elas acontecem? É feito algum trabalho de conscientização com os passageiros nesse sentido?
EK: As expedições como as em que trabalho levam em consideração a parte educacional e de experiência de vida. A temporada na Antártica vai de novembro a março, e a temporada no Ártico, de maio a início de outubro. É traçado um itinerário, mas tudo depende muito do clima local, principalmente do vento. A partir do navio, fazemos expedições com botes infláveis que levam dez pessoas, e exploramos partes de água, procurando por vida marinha e icebergs. É diferente do turismo, que tem uma programação fixa e que leva as pessoas a um local pré-determinado, descem num píer e visitam o local. Em expedições, no dia anterior é determinado oficialmente o que vamos tentar fazer no dia seguinte. Quando exploramos ambientes terrestres na Antártica, marcamos uma região com cones ou bandeiras, e as pessoas só podem andar naquela área demarcada, como uma trilha pré-definida, porque a vegetação na Antártica não evoluiu com organismos pisando nela e levam muito tempo para se recuperar do dano. Saímos de manhã para explorar um local, voltamos ao meio-dia, e depois do almoço, saímos de novo, para ver baleias, focas, pinguins, icebergs e tudo mais que o ambiente tem a nos oferecer. Por fim, há sempre uma conversa sobre como foi o dia, a programação seguinte e uma palestra. Para irmos à Antártica tem a cruzada do estreito de Drake, que leva de um dia e meio a dois dias. Aproveitamos esse tempo para fazer palestras sobre geologia, história, a fauna, as baleias, os pinguins e as aves e preparar os passageiros para o que iremos vivenciar. Já no Ártico, onde há uma tundra mais desenvolvida que evoluiu com mamíferos terrestres como renas, raposas do Ártico, ursos polares e seres humanos, as caminhadas são em grupos guiados, mas ainda assim existe um cuidado muito grande com a vegetação e com os ursos polares. A segurança também é fator essencial. A distância de frente da geleira deve ser sempre maior a 400 metros, e, se ela for ativa, essa distância deve ser bem maior. Na Antártica, a distância mínima de colônias de pinguins é de 15 metros, das focas 5 metros, mas se notamos que os animais estão incomodados com a nossa presença ou mudam de comportamento, a aproximação nem ocorre e ficamos a uma distância bem maior. Não queremos interferir. Eu gosto muito de ver as transformações nas pessoas durante as expedições. A maioria dos passageiros vem pela experiência, querem ver um urso polar. Mas a pandemia marcou um antes e depois. Há sete ou oito anos, quando dava uma palestra a bordo sobre mudanças climáticas, tinha gente que saía da sala. Mas hoje em dia o que vem de passageiro falar que botou na ponta do lápis os cálculos de emissão de gás carbônico, a chamada pegada de carbono, ou gente que decidiu que depois da viagem vai passar um ano andando de bicicleta para compensar a emissão de gases do efeito estufa durante a viagem… Há um aumento considerável de conscientização. E ao mesmo tempo uma frase frequente: “Quero ver antes que acabe”.
Há sete ou oito anos, quando dava uma palestra a bordo sobre mudanças climáticas, tinha gente que saía da sala. Mas hoje em dia o que vem de passageiro falar que botou na ponta do lápis os cálculos de emissão de gás carbônico, a chamada pegada de carbono, ou gente que decidiu que depois da viagem vai passar um ano andando de bicicleta para compensar a emissão de gases do efeito estufa durante a viagem…
CH: E para você, o que há de mais fascinante nesses ambientes extremos? Por que escolheu se dedicar a eles?
EK: Quando tinha 13 anos li um artigo de revista sobre fasciite necrosante, a bactéria comedora de carne, um Streptococcus, entre outras bactérias específicas, que pode matar pessoas em 24 horas se não reagir aos antibióticos. Na época, fiquei impressionada como aquele organismo, uma vida tão pequena, podia matar a gente. Desde então, decidi que seria bióloga. Fiquei seis anos no laboratório de microbiologia ambiental na UFRGS e aprendi sobre microrganismos em ambientes extremos. Foi lá também que tive contato com a exobiologia, como chamavam na época a astrobiologia, em um curso coordenado pelo professor Jorge Quillfeldt na UFRGS. Desde adolescente eu queria entender como a vida existe. Somos todos feitos do mesmo material, mesmas moléculas, mas são receitas diferentes, interações diferentes, reações diferentes. Mas a origem da vida é a mesma. Eu não acredito que a Terra esteja sozinha nessa. Pensamos nos microrganismos vivendo em ambientes de baixíssimas temperaturas, de menos de 20 ou 30 graus negativos, mas ambientes gelados são os mais abundantes do universo. Passei anos estudando a possibilidade de vida fora do planeta usando modelos astrobiológicos, modelos de baixíssima temperatura, como na Antártica e sempre tive muita curiosidade de entender como essa vida acontece. Dediquei minha vida acadêmica a isso e depois de duas décadas senti a necessidade de dividir mais com alunos e o público em geral em atividades de educação para mostrar quão frágeis são esses ambientes extremos. Nós não somos donos do planeta, nós o compartilhamos.
Nós não somos donos do planeta, nós o compartilhamos
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