Historicamente, a população negra e afrodescendente brasileira foi invisibilizada, destituída de seus direitos e oportunidades. Assim, sua participação na constituição do território e da paisagem no Brasil não foi reconhecida na narrativa oficial ou registrada nos livros didáticos. Um enorme contingente de pessoas foi vitimado com a segregação socioespacial e isolado por preconceitos raciais que se mantêm até os dias atuais. Se, inicialmente, essa população foi constrangida pela dominação branca colonizadora europeia, hoje permanece oprimida por uma ideologia da classe dominante branca brasileira.
O reconhecimento da pluralidade étnico-racial da sociedade brasileira deve ser afirmado para que todos possam se beneficiar da igualdade de oportunidades e para que se elimine qualquer forma de discriminação. A negação da existência do racismo ou sua atribuição à sociedade de maneira abstrata impede que se enfrente o problema. Essa questão deve ser debatida em todas as instâncias da sociedade, por razões históricas e pela importância da população negra no Brasil. E a escola é obrigatoriamente um dos espaços essenciais para esse debate.
A ideia da existência de raças diferentes e desiguais impediu por muito tempo que os negros tivessem sua importância reconhecida para a formação do que hoje se chama nação brasileira. Muitos acreditam que o país tenha sido constituído, principalmente, pela miscigenação de brancos, índios e negros, ou seja, o mito da igualdade e da democracia racial. Em uma tentativa de construção de uma identidade nacional que historicamente esteve e está ligada à legitimação dos interesses de determinados grupos sociais, a raça branca dominante impôs o branqueamento da população pela via da miscigenação. Ao negro, entretanto, sempre restou um papel subalterno, por ter sido considerado pertencente a uma raça inferior.
A identidade nacional brasileira foi forjada ao longo da história do país. Criou-se a ideologia da democracia racial, que encobre as verdadeiras formas de relações raciais existentes. Isso resultou na ideia corrente de que existe no país uma miscigenação democrática, mito que nos leva a crer na não existência da discriminação racial e que dificulta a definição do que é ser negro no Brasil.
O estudo da cultura e história africana e afro-brasileira ganhou espaço no campo educacional devido à atuação do movimento social negro no país e ao valor dado à educação na ação pela reavaliação do papel da população negra na formação da sociedade nacional. A presença da temática no currículo escolar, garantida pelas leis 10.639/2003 e 11.645/2008, veio estimular a constituição de uma prática docente questionadora diante da discriminação e do preconceito racial e pautada no princípio de pluralidade cultural e respeito às diferenças.
No entanto, ainda é um desafio construir uma cultura curricular que contribua para uma educação antirracista. Infelizmente, mesmo com a implementação das leis, o tema é pouco discutido pelos docentes, devido ao enraizamento ideológico do discurso da democracia racial e ao fato de as diretrizes e bases da educação estarem condicionadas a tendências de um padrão sociocultural e político construído na perspectiva da branquitude e da cultura eurocêntrica.
As inúmeras pesquisas que abordam a questão afro-brasileira e suas grafias lançaram luz sobre uma nova compreensão das marcas deixadas pelo povo negro na cultura brasileira, desde o período da escravidão até os dias atuais. Nesse sentido, as ações que valorizam esse registro são as responsáveis por destacar e dar visibilidade aos conhecimentos produzidos na perspectiva afrocentrada.
Uma dessas ações é o trabalho desenvolvido pelo projeto Herança Conhecimento Africano e Afrodescendente na Construção da Identidade Brasileira, do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O trabalho busca estabelecer um diálogo entre universidade, escola e sociedade em relação às questões étnicas e raciais, que dizem respeito, especificamente, à população negra e afro-brasileira.
O objetivo do projeto é, por meio da pesquisa das ações educativas em sala de aula e das atividades de extensão nas escolas, criar mecanismos para promover e divulgar uma educação antirracista, que visa ao combate do preconceito e da discriminação. O projeto parte do fato de que as referências culturais afro-brasileiras muitas vezes não são valorizadas na escola e na sociedade por falta de conhecimento de temas que dizem respeito à cultura do povo negro e à história e geografia da África. A proposta é desconstruir os estereótipos e preconceitos manifestados nos conceitos racistas e de invisibilidade de todo o povo que construiu de forma efetiva a identidade sociocultural da nação e a paisagem brasileira.
Com a inclusão dos temas de África e africanidade no universo escolar, intenta-se romper com a forma de como o negro e o afrodescendente eram abordados até então nos conteúdos escolares. Eles eram considerados povos ‘escravos’, e não ‘escravizados’; eram chamados de ‘povo liberto’, e não ‘cidadão livre’ na acepção mais nobre do significado de liberdade. A abordagem dessa temática, associada ao reconhecimento dos povos africanos na construção da paisagem e identidade brasileiras, deve ser instrumento para enfrentar e eliminar a intolerância e diminuir a evasão escolar de alunos e alunas vítimas constantes do preconceito racial.
Em geral, as manifestações da cultura negra na escola se restringiam às comemorações de datas específicas, como 13 de maio ou 20 de novembro, quando é reforçado o estereótipo do escravo trabalhador e do negro que teve relevância social por ser rico, reforçando o mito de que o preconceito e o racismo diminuem com a ascensão econômica. O esforço do projeto consiste em proporcionar a reflexão crítica da situação do negro no Brasil e também recuperar os traços de africanidade que foram excluídos no processo de construção do ideário de modernidade brasileira.
Nos últimos anos, o foco das ações do projeto foi a contação de histórias, tendo como público principal os estudantes da educação básica. Esse trabalho ratificou a ideia de que as referências culturais negras, que, muitas vezes, não são valorizadas na escola e na sociedade, devem ter prioridade, com trabalhos dirigidos nas séries iniciais do ensino fundamental.
O projeto envolve atividades de ensino, pesquisa e extensão. Essas ações serão articuladas por palestras sobre geografia e história da África voltadas a professores da rede básica e por oficinas para estudantes de ensino fundamental e médio.
Faz-se necessário ampliar os temas que relacionem a presença do negro, que, na contemporaneidade, vem produzindo novas referências e olhares sobre as diferenças e a diversidade cultural. Portanto, os conteúdos de África e cultura africana tendem a lançar luz sobre esses novos olhares e sobre concepções de produção escrita presentes, sobretudo, nos livros escolares e nas narrativas amparadas na visão eurocêntrica e na perspectiva da branquitude.
Dedicados à manutenção de uma visão racista, esses livros e narrativas, mesmo no século 21, fortalecem a cultura da intolerância e da desigualdade racial. O intuito do projeto é justamente romper com a visão única, eurocêntrica, presente nas salas de aula. Além disso, questionar o papel estereotipado do negro e o lugar de inferioridade do continente africano, tanto na dimensão material quanto simbólica.
São várias as alternativas de trabalho para promover uma ‘descolonização’ ideológica para melhor contextualizar os conteúdos das questões étnico-raciais, enfatizando de forma crítica a história do negro e do afrodescendente como sujeitos sociais. É preciso adotar novas metodologias de ensino, que estejam afinadas à perspectiva afrocentrada e que abordem a temática étnico-racial sem subjugá-la à dimensão mitológica, folclórica e exótica, em que teorias racistas resumem o ser humano à aparência, a aspectos físicos, a habilidades corporais, à cultura e religiosidade e à cor da pele.
Instituto de Geociências,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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