Febre russa: a chegada de uma literatura arrebatadora no Brasil

Dostoiévski, Gógol e Tolstói marcaram a literatura mundial do século 19. (Ilustração: Cavalcante)

Em fins do século 19, leitores de todo o mundo foram pegos de surpresa por uma incrível novidade literária: a literatura russa caiu nas graças do público, do Japão ao Brasil, e se tornou a grande sensação cultural da noite para o dia. Pa¬ris, o grande centro irradiador das artes daquela época, foi inundada por uma onda de traduções de romances russos, cujos títulos traziam os estranhos (para ouvidos não-russos…) nomes de, entre outros, Liev Tolstói (1828-1910), Fiódor Dostoiévski (1821-1881) e Nikolai Gógol (1809-1852). Obras essenciais como Crime e castigo , Os irmãos Karamázov , Ana Kariênina , Guerra e paz e Almas mortas tomaram as prateleiras das livrarias. A ‘inundação’ chegou a tal ponto que muitos faceiramente se perguntaram se aquilo tudo não seria uma retaliação, com tinta e papel, da malograda invasão à Rússia feita 80 anos antes pelas tropas francesas de Napoleão Bonaparte.

Críticos e escritores não conseguiam conter o entusiasmo com aquela descoberta. A escritora portuguesa Maria Amália Vaz de Carvalho (1847-1921) publicou em 1888 um artigo sobre Tolstói em que afirmava que o comentário mais comum entre os literatos portugueses de então era: “Você já leu os russos?” Na mesma época, um escritor do estado norte-americano do Kentucky dizia que o romance russo encontrava-se em todas as bancas; um resenhista inglês dizia que Tolstói era o maior dos romancistas contemporâneos; e outro escritor afirmava que “no momento, a Rússia toma a posição que a Inglaterra tinha no século 17 e a França no 18”. Não era pouca coisa. Comentários desse tipo, de meados dos anos 1880 em diante, passaram a encher as páginas de jornais e revistas mundo afora. E os exemplares das tais obras russas chegavam imediatamente aos nossos portos. Vasculhando as livrarias de sua cidade em 1887 ou 1888, qualquer literato brasileiro que desejasse ficar a par do que corria de mais avançado nas letras européias poderia começar gastando 2.500 contos de réis, o preço de O que fazer? , ensaio doutrinário de Tolstói, e seguir comprando um belo pacote contendo, além dos ensinamentos do conde filósofo, volumes de Dostoiévski, Gógol e Ivan Turguêniev (1818-1883) e, se estivesse realmente contagiado pela febre russa, de outros menos destacados pela crítica, como Ivan Gont-charóv (1812-1891).

Boa parte dessa súbita divulgação foi obra de alguns críticos franceses, que identificaram na literatura russa um solo fértil para apimentar as discussões artísticas de seu país. Em especial, acharam que aqueles artistas serviam como alternativa à literatura naturalista de Èmile Zola (1840-1902), escritor que usava métodos de investigação científica para a elaboração de textos ficcionais. Passaram a apontar os russos como saída para os impasses da literatura do fim de século. Viam naquela ficção tão saborosa uma possibilidade de injeção de emoção no que consideravam um panorama excessivamente frio e cerebral. Por meio dos russos seria possível trazer novamente os mistérios da alma para a literatura.

O mestre de cerimônias desses críticos franceses pioneiros foi o visconde Eugène-Melchior de Vogüé (1848-1910), acompanhado pelo seu influente ensaio O romance russo (1886). Em uma afirmação famosa, Vogüé afirmava que a literatura se tornava “odiosa” sem “fé, emoção ou caridade” e que os russos eram excelente reservatório desse tipo de material. Certas afirmações de Vogüé e de outros críticos franceses ‘colaram’ de uma maneira impressionante. Em sua seqüência, por exemplo, tornou-se de lei falar de Dostoiévski como um especialista na ‘religião do sofrimento’, título do capítulo correspondente de O romance russo .

Vale observar que esses escritores russos eram novidade apenas para os leitores fora da Rússia. Neste país eram todos muitíssimo bem conhecidos e, diga-se de passagem, quando caíram nas graças do mundo já estavam quase todos mortos (a exceção era Tolstói, que viveu até 1910). Seu sucesso internacional foi, assim, póstumo.

Traduções precárias
Na esteira desse e de outros importantes estudos veio a enxurrada de edições de Dostoiévski e seus conterrâneos, então traduzidos pela primeira vez, às vezes em edições extremamente precárias, verdadeiras adaptações que algumas delas eram, ou então novamente publicados, agora para um público mais amplo e com respaldo crítico considerável. Para dar conta da demanda do mercado, editoras prestigiosas desenvolveram autênticas linhas de montagem de tradução de romances russos, tarefa dividida entre estudantes e emigrantes de origem russa residentes em Paris. Julgando insuficiente o número de romancistas russos disponíveis, alguns foram inventados por editores e tradutores ansiosos para aproveitar a moda.

Todo esse cenário de euforia era impensável havia pouco tempo. Antes de meados da década de 1880, a literatura russa não era conhecida fora de suas fronteiras, salvo por alguns contatos literários esporádicos e por tentativas de aproximação cultural que não obtinham grande sucesso de crítica e público. Quase nenhum intelectual francês, inglês ou alemão se dispunha a falar bem dela, ou ao menos a admitir a sua existência. Os poucos que o faziam pregavam no deserto. É importante lembrar que a opinião de críticos desses países era essencial para que uma novidade artística entrasse no mercado internacional com peso decisivo. Além disso, pesava na balança a péssima imagem que o Império russo tinha para a opinião pública ocidental, que, ao longo do século 19, o considerava o país mais reacionário e bárbaro no mapa europeu – se é que de Europa se tratasse, pois havia muitas dúvidas quanto a isso. Esse último senão foi suavizado pela aliança política feita pela França com a Rússia nos anos 1870, uma audaz jogada diplomática. O objetivo era contrabalançar o poderio alemão, que lhe impingira uma derrota fragorosa na guerra franco-prussiana (1870). Criou-se um clima favorável à divulgação das coisas russas na França, da música às artes plásticas, e os ficcionistas pegaram carona nesse ambiente.

Bruno Barretto Gomide
Departamento de Letras Orientais,
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo 

 

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