Rio de Janeiro

Embate clássico: de um lado, as terapias tradicionais baseadas em empirismo ou superstição; de outro, a medicina convencional sustentada em saberes referendados pela ciência. Não é de hoje que os métodos alternativos de cura provocam desconfiança. A briga é mais antiga do que se imagina.

No século 18, em Portugal, os tribunais da Inquisição não economizaram tinta nas condenações contra curandeiros e terapeutas místicos. Mas, até há pouco, curioso detalhe passara despercebido às pesquisas historiográficas: a perseguição a esses ‘bruxos’ não era, necessariamente, resultado da intransigência dos inquisidores. Documentos indicam que essas condenações tiveram uma motivação mais corporativista. Foram os representantes da então emergente classe médica portuguesa – novos médicos e cirurgiões doutrinados no espírito do Iluminismo – que se aliaram à Inquisição para pedir a cabeça dos curandeiros e seus congêneres. Afinal, havia um mercado em disputa.

Quem analisa a questão é o historiador norte-americano Timothy Walker, da Universidade de Massachusetts-Dartmouth. Ele empreendeu o que chama de ‘trabalho de detetive’: passou anos a fio enfurnado em bibliotecas a vasculhar milhares de arquivos empoeirados. E a busca rendeu o livro Médicos, medicina popular e Inquisição: a repressão das curas mágicas em Portugal durante o Iluminismo. Publicada em inglês há mais de 10 anos, a pesquisa ganha agora a primeira tradução para o português, por uma parceria entre a Editora Fiocruz (Rio de Janeiro) e a Imprensa de Ciências Sociais (Lisboa).

Walker esteve no Brasil em novembro para uma conferência na Fundação Oswaldo Cruz, na capital fluminense, quando conversou com Ciência Hoje sobre a relação dos inquisidores com os representantes da classe médica lusitana.

Timothy WalkerMagia, curandeiros, terapeutas místicos. O assunto de seu livro desperta muita curiosidade. O que suas pesquisas revelaram?
Em meu doutorado, estudei a perseguição às bruxas em Portugal. Mas depois de alguns meses de pesquisa percebi que, na documentação histórica, muitas das pessoas chamadas de ‘bruxas’ eram, na verdade, curandeiros e saludadores – praticantes de métodos tradicionais de cura. Isso mudou os rumos de minha pesquisa. Pois havia ali uma história muito interessante a ser investigada.

E quem eram, afinal, esses curandeiros e saludadores?
Acreditava-se que algumas pessoas nasciam com um dom, uma capacidade divina de curar pelo toque das mãos. Eram os chamados saludadores. Eles usavam suas mãos para ‘extrair’ a doença ou o que quer que fosse que estivesse a causar sofrimento ao paciente. Por isso, os saludadores preocupavam muito a Inquisição. Pois, teologicamente, havia um entrave: ou essas pessoas estavam sob forças demoníacas; ou Deus poderia, quem sabe, estar mesmo atuando por meio delas. Isso seria um problema e tanto para a Igreja, pois naquela época ensinava-se que a era dos milagres já havia terminado. E a existência de pessoas comuns com capacidade de cura era algo que contradizia a ortodoxia da Igreja.

A existência de pessoas comuns com capacidade de cura era algo que contradizia a ortodoxia da Igreja

Já os curandeiros praticavam uma medicina mais mecânica, ou, de certo modo, um tipo de bruxaria. Usavam objetos, ossos, substâncias naturais ou qualquer coisa que pudesse servir como elemento de cura. Os curandeiros detinham conhecimentos de medicina tradicional, e misturavam esses saberes com rezas, encantamentos, versos ou rituais que supostamente facilitariam as curas. E há histórias incríveis. Conta-se que um curandeiro do século 18, certa vez, emprestou de três mulheres uma porção de farinha – e essas três mulheres se chamavam Maria. Um dia um bebê ficou doente, e, para ser curado, deveria, segundo o curandeiro, ser passado na tal farinha, que acabou ficando conhecida como ‘farinha de três Marias’.

Para inibir a atuação desses curandeiros, entre os séculos 17 e 19, o senhor diz que houve uma espécie de aliança informal entre a Inquisição e a classe médica lusitana. Que história é essa?
De um lado, inquisidores estavam motivados a combater as atividades heréticas. De outro, representantes da classe médica tinham motivações profissionais para alterar a forma como a medicina era praticada em nível popular. E, claro, os médicos e cirurgiões também queriam eliminar a concorrência, por assim dizer. Mas as motivações dos médicos não podem ser reduzidas apenas a essa dimensão econômica. Eram muito mais complexas.

Os médicos portugueses realmente se consideravam agentes de mudança na consciência do povo de Portugal, e queriam impedir, portanto, a ação daqueles que consideravam charlatões e falsários. Detalhe: a maioria dos portugueses não tinha a opção de ir a um médico licenciado, pois eram caros e, em especial nas áreas rurais, sequer havia profissionais habilitados em medicina. A população preferia resolver seus problemas de saúde da maneira tradicional, isto é, indo a um curandeiro ou a um saludador.

Havia entre a classe médica, ainda, outra razão para condenar a medicina tradicional: é que muitos desses profissionais eram católicos praticantes. Levavam a sério sua religião e acreditavam estar fazendo algo positivo ao reforçar os ensinamentos da Igreja. É relevante mencionar que, em muitos casos, esses novos doutores eram, também, os próprios funcionários da Inquisição.

Você leu apenas o início da entrevista publicada na CH 322. Clique aqui para acessar uma versão parcial da revista e ler o texto completo.
Seu Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Outros conteúdos desta edição

614_256 att-22689
614_256 att-22687
614_256 att-22685
614_256 att-22683
614_256 att-22681
614_256 att-22679
614_256 att-22675
614_256 att-22673

Outros conteúdos nesta categoria

614_256 att-22975
614_256 att-22985
614_256 att-22993
614_256 att-22995
614_256 att-22987
614_256 att-22991
614_256 att-22989
614_256 att-22999
614_256 att-22983
614_256 att-22997
614_256 att-22963
614_256 att-22937
614_256 att-22931
614_256 att-22965
614_256 att-23039