A partir deste mês, o Sistema Único de Saúde (SUS) passa a oferecer uma vacina contra o papilomavírus humano (HPV), agente causador do câncer do colo de útero e responsável por outras doenças sexualmente transmissíveis, como verrugas genitais e cânceres de ânus, garganta e pênis. A campanha de imunização pretende atingir 5,2 milhões de meninas entre 11 e 13 anos. A vacina estará disponível durante todo o ano em 36 mil postos de saúde da rede pública e em escolas públicas e privadas.
Apesar de anunciada como esperança contra o câncer, ainda há muitas dúvidas sobre o real impacto da vacina, além de questionamentos sobre a faixa etária alvo escolhida pelo Ministério da Saúde, o plano de vacinação adotado no Brasil e a sua relação custo-benefício como estratégia de saúde pública.
A vacina distribuída na rede pública é a quadrivalente Gardasil, do laboratório farmacêutico Merck, que protege contra a infecção para quatro sorotipos do vírus HPV: 6 e 11, relacionados com o aparecimento de verrugas genitais, e 16 e 18, responsáveis por cerca de 70% dos casos de câncer de colo de útero no mundo. Além da adotada pelo SUS, existe uma vacina bivalente, da GSK, disponível na rede privada, que protege apenas contra os tipos 16 e 18.
A vacina escolhida é a que cobre mais tipos de HPV, mas ainda assim deixa de fora 30 outros tipos, 13 deles também ligados ao câncer. Essa cobertura parcial tem preocupado médicos que acreditam que a campanha governamental não tem sido clara sobre esse ponto.
“Do modo que a campanha vem sendo feita, como se a vacina fosse infalível, muitas pessoas podem achar que estão seguras e deixar de fazer o exame Papanicolau, estratégia crucial e já consolidada de prevenção ao câncer de colo de útero e outras doenças”, diz o médico Daniel Knupp, diretor de pesquisa e pós-graduação da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), associação científica que lançou uma nota de repúdio à adoção da vacina pelo SUS. “Só com esse exame é possível evitar o câncer causado por todos os 13 tipos de HPV que a vacina não cobre.”
O Papanicolau foi até hoje a principal ação de saúde para prevenção de câncer de colo de útero e ovário no país. No exame, o médico recolhe um esfregaço de células do útero para análise. Esse material pode revelar a presença da infecção por HPV e as lesões precursoras do câncer. A cauterização ou remoção cirúrgica das lesões evita o desenvolvimento da doença. Desde que o preventivo foi implantado no país, a morte por câncer de colo uterino caiu 75%.
Apesar dos bons resultados do exame, a bióloga Luisa Villa, da Universidade de São Paulo (USP), afirma que não é possível compará-lo à vacina, por serem estratégias diferentes.
“A vacina é o que chamamos de prevenção primária, ela elimina o vírus e a pessoa vacinada não tem chance alguma de ter o câncer causado por aqueles tipos virais”, explica a pesquisadora, que conduziu estudos clínicos sobre a vacina como consultora da Merck. “O Papanicolau é um rastreamento que identifica quem pode ter uma lesão pré-cancerosa; é prevenção secundária. Se ele fosse muito eficiente, teria erradicado o câncer de colo de útero, o que não ocorreu em país nenhum do mundo, porque as mulheres não fazem o acompanhamento devido de forma regular. As duas ações se complementam; juntos, exame e vacina formam uma estratégia muito efetiva para controlar o câncer.”
O médico pediatra e gestor de saúde pública Alberto Chamovitz não duvida da eficácia da vacina para combater os quatro tipos de HPV a que se destina, mas questiona sua adoção do ponto de vista dos gastos públicos e do seu benefício para a população. “A vacina não vai mudar o comportamento das pessoas, que é o que dissemina a doença”, aponta. “A mulher vacinada não deve deixar de fazer sexo com proteção e o exame preventivo porque se vacinou. Caso contrário, seria uma roleta-russa: ao fazer sexo desprotegido, seria uma sorte a mulher encontrar um parceiro infectado somente pelos tipos de HPV cobertos pela vacina. Por isso, não recomendo a vacina para as minhas pacientes, pois não faz diferença.”
E continua: “Em gestão de saúde, temos o que chamamos de custo de oportunidade: quando você compra uma coisa, tem que deixar de comprar outra. Gastar milhões de reais com a compra de uma vacina de resultados ainda duvidosos e que dá uma falsa impressão de segurança não parece uma decisão acertada em termos de saúde pública.”
Um preventivo custa hoje em torno de R$ 12 para o SUS e deve ser repetido a cada dois anos. A dose de Gardasil está sendo comprada da Merck por US$ 14 (cerca de R$ 34) – abaixo do valor de varejo, em torno de US$ 100. Cada menina deve receber três doses da vacina para estar imunizada, o que gera um gasto aproximado de R$ 530 milhões para atingir o público-alvo da primeira etapa da campanha de vacinação.
Além desse valor, o governo federal está investindo cerca de R$ 15 milhões na divulgação da campanha de vacinação e mais R$ 300 milhões para transferir a tecnologia da fabricação da vacina para o Instituto Butantan, em São Paulo. A instituição já iniciou o processo de preparação e treinamento e deve começar a produção do imunizante daqui a sete anos.
Segundo o diretor do instituto, o imunologista Jorge Kalil, o preço de cada dose deve baixar quando a vacina passar a ser feita aqui no Brasil. “O custo é pequeníssimo quando se verificam as vantagens obtidas para a saúde da população”, defende.
Diversos estudos foram feitos fora e dentro do país para avaliar o custo-benefício da vacina. No entanto, nenhum deles apresenta uma conclusão definitiva. Ainda há muitas lacunas sobre o efeito do imunizante. Não se sabe, por exemplo, o tempo de proteção da vacina, usada há apenas 10 anos. Em testes com mulheres vacinadas, os melhores resultados até agora mostraram imunização por oito anos.
Mas já é possível acompanhar o real impacto da vacina sobre a saúde pública em países como a Austrália que, desde 2007, a distribui gratuitamente para mulheres de 11 a 26 anos. Atualmente, cerca de 70% das jovens dessa faixa etária já foram vacinadas no país. Estudos de monitoramento mostram que, cinco anos depois do início da vacinação, houve uma queda de 90% nos casos de verrugas genitais entre as mulheres e de 70% entre os homens heterossexuais, que passaram a se expor a menos mulheres com o HPV.
“Esses dados mostram o quanto a vacina é eficaz e induz uma clara imunidade de grupo”, comenta Villa. “Imunidade que seria maior ainda se fosse oferecida também para homens, especialmente homossexuais.”
Apesar dos bons resultados com o controle de verrugas genitais na Austrália, não há dados sobre o impacto da vacina na redução do câncer de colo de útero entre a população. Isso porque a vacina só está disponível há uma década e o período entre a infecção por HPV e o aparecimento da doença é, em média, de 20 anos – enquanto o intervalo para o aparecimento de verrugas é de apenas alguns meses. Embora, segundo Villa, haja dados ainda não publicados que mostram redução das lesões precursoras do câncer de colo de útero na Austrália.
Por isso, o médico Daniel Knupp afirma que não é possível falar em redução do câncer. “Os estudos que avaliam os benefícios da vacina contra o HPV não indicam que ela previne o câncer de colo uterino, mas sim que reduz a incidência das lesões que às vezes são precursoras do câncer”, diz. “Essas lesões são divididas em três tipos, conforme sua gravidade, e cerca de 70% delas são curadas pelo próprio sistema imune da mulher. Os demais 30% podem ser tratados antes de evoluírem para um câncer.”
Por outro lado, Villa lembra que a vacina protege contra as verrugas e outras doenças, como o câncer de pênis e ânus. “As verrugas genitais, anais e orais são mais que um incômodo, e o câncer peniano pode, em casos mais graves, levar à amputação e à morte”, diz a médica.
Questão de idade
Outro aspecto controverso da vacina é a faixa etária a que vem sendo destinada. Nos Estados Unidos, a médica ginecologista Diane Harper, da Universidade De Missouri Kansas, que coordenou estudos clínicos da vacina financiados pela Merck, causou rebuliço ao afirmar publicamente que a vacina traz mais riscos que benefícios para meninas que ainda não iniciaram a atividade sexual – justamente a faixa etária alvo da campanha de vacinação no Brasil, que será estendida para meninas de nove anos a partir de 2015.
Segundo a pesquisadora, sem conhecer ainda o tempo de proteção da vacina, não faz sentido imunizar essas meninas. “O preventivo nunca matou ninguém e sozinho previne mais cânceres de colo de útero que a vacina sozinha”, disse Harper ao jornal britânico The Huffington Post. “Já a vacina está associada a efeitos adversos sérios. Se administrada em meninas com 11 anos e não atingir validade de pelo menos 15 anos, não haverá nenhum benefício, apenas riscos, pois os cânceres de colo de útero não se manifestam em faixas etárias tão novas.”
Entre os efeitos adversos relacionados à vacina, já foram registrados casos de doenças autoimunes e morte. Embora esses eventos não tenham sido diretamente causados pelo imunizante, mas acionados por ele, a sua ocorrência levou o governo do Japão a suspender a recomendação de uso da vacina no país.
Knupp acrescenta que nenhum teste clínico da vacina foi feito com a faixa etária que vem sendo recomendada para vacinação. Todos os ensaios clínicos até hoje analisaram mulheres com mais de 15 anos. “Não sabemos se o público-alvo da vacina vai reagir da mesma forma”, questiona o médico. “São poucos anos de diferença, mas pegam uma faixa etária crucial: a pré-adolescência, quando as meninas passam por muitas transformações que podem resultar também em uma diferença de resposta imunológica.”
Além disso, o médico destaca que a campanha do SUS segue um calendário de vacinação diferente do recomendado pelo fabricante da vacina. Segundo a Merck, a segunda dose da vacina deve ser tomada dois meses após a primeira, seguida de um reforço seis meses depois. No SUS, para reduzir custos, a segunda dose será oferecida seis meses após a primeira. A terceira, só depois de passados cinco anos.
Outros países, como México, Colômbia e Canadá também adotaram esse esquema alternativo. Embora não tenham sido conduzidos testes clínicos específicos para esse calendário, a medida é aprovada pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas).
Não é possível saber se as meninas vacinadas já estarão imunizadas com a segunda dose ou se terão que esperar mais de cinco anos para obter a proteção. “Estudos mostram que duas doses geram uma resposta imune similar à de três doses”, diz Villa. “Mas não há garantia de que esse esquema alternativo funcione tão bem quanto o oficial. Esperemos que sim.”
Pesando os prós e contras, a bióloga ainda assim acredita que tomar a vacina é a melhor decisão. “Os eventos adversos podem ser graves, mas acontecem, entre as meninas adolescentes vacinadas, na mesma proporção que em meninas que não recebem a vacina”, pontua. “Eu prefiro que a menina, em taxas muito baixas, tenha algum risco – que acontece com qualquer medicamento, até uma aspirina – do que daqui a menos de 20 anos desenvolva um câncer que pode matar em proporção muito maior.”
O ginecologista Renato Ferrari, do Hospital Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que já vacinou a filha adolescente na rede privada, tem a mesma opinião. “Ainda há dúvidas sobre as vacinas, mesmo porque quem faz a maioria das pesquisas sobre elas são os próprios laboratórios que as fabricam, mas até o momento as vacinas contra HPV têm se mostrado eficazes”, comenta. “Em termos de saúde pública, pensando nos gastos de distribuir a vacina a todos, a questão é complexa, mas do ponto de vista particular a decisão é mais simples e individual. Se temos uma vacina que pode proteger de uma infecção, não vale a pena tomar? Como fica a consciência de um pai que não vacina a filha adolescente e depois ela desenvolve câncer?”