Ciência Hoje/RJ

2044. O maior evento da Terra começou de vento em popa. Na televisão e na internet, bilhões de pessoas acompanham as provas olímpicas, espetáculo de mais alto custo e de maior audiência da história. Na pista central do estádio olímpico, projetada para devolver a energia cinética das passadas em forma de impulso para os atletas, homens com próteses eletrônicas nas pernas correm como deuses ciborgues, sem dar chance aos concorrentes tradicionais. No campo, saltadores erguem-se a dezenas de metros, impulsionados por varas eletrônicas retráteis extremamente flexíveis. No ginásio ao lado, atletas vestindo exoesqueletos levantam toneladas para descobrir quem é o mais forte.

Sobre uma base tecnológica, nasceu o esporte de ‘alto desempenho’, que explora cada vez mais os limites do corpo e levanta o questionamento: quais limites podem e valem a pena ser batidos?

Os treinadores acompanham as estatísticas dos atletas em tempo real: velocidade, deslocamento, aceleração, fadiga, tudo captado por chips e sensores de movimento e projetado em telas holográficas. Os competidores, é claro, devem passar por rigorosos exames antidoping feitos momentos antes da competição, e que podem ser repetidos nos 20 anos seguintes, em caso de suspeitas.

Três décadas nos separam desses hipotéticos Jogos Olímpicos. Embora algumas das tecnologias citadas nesse exercício de futurologia pareçam ficção científica, muitos aspectos do cenário são realistas e refletem como a ciência e a tecnologia modificaram intensamente as várias modalidades esportivas nas últimas três décadas – e continuarão a fazê-lo nos próximos anos. Sobre essa moderna base tecnológica, nasceu o esporte de ‘alto desempenho’, explorando cada vez mais os limites do corpo humano – e levando a humanidade a se questionar sobre quais limites podem e valem a pena ser batidos.

Uma história tecnológica

A introdução da ciência e da tecnologia no esporte não é algo recente. Desde a recriação das Olimpíadas, em 1896, vem ocorrendo gradativamente, acompanhando a evolução do próprio conhecimento – muitas vezes em áreas de vanguarda, como a indústria aeroespacial. “Quando olhamos para os primeiros Jogos Olímpicos da era moderna, é possível ver o enorme contraste e a evolução tecnológica que ocorreu desde então – da incorporação de inovações muito simples a outras muito complexas”, destaca o engenheiro biomédico Alexandre Pino, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que trabalha com análises biomecânicas aplicadas ao remo.

Halterofilismo
No halterofilismo, a técnica postural para suportar cargas cada vez maiores evoluiu junto com o local de competição: piso emborrachado permite aos atletas simplesmente largar o peso ao atingir a posição mais elevada. (foto: Flickr/ ¡Carlitos – CC BY-NC-SA 2.0)

No atletismo, por exemplo, Pino lembra que uma das primeiras inovações aconteceu na própria posição de largada: ao começar agachado, com o corpo preparado para o próximo movimento, o atleta ganha tempo. “Antes disso, cada um dos competidores saía como queria, de lado, de frente, era uma bagunça.” Ao longo do tempo, tecnologias ganharam espaço, como tênis mais leves e roupas que diminuem o arrasto.

Após o grande prejuízo dos Jogos de Montreal (Canadá), em 1976, percebeu-se que a estrutura dos Jogos Olímpicos não podia mais ser bancada apenas pelo poder público

Os locais de competição também avançaram, para melhorar desempenhos e prevenir lesões. No halterofilismo, por exemplo, o piso emborrachado evoluiu junto com a técnica da modalidade, para que o atleta possa simplesmente largar os pesos no chão após erguê-los. “As quadras de vôlei de anos atrás, cujos pisos duros facilitavam a ocorrência de lesões, também deram lugar a novas arenas, com pisos que absorvem o impacto dos saltos, o que aumentou a ‘vida útil’ dos atletas”, explica Pino.

O grande marco para a entrada da ‘alta’ tecnologia e da ciência no esporte, no entanto, foi a década de 1980, segundo a psicóloga e educadora Katia Rubio, da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP), integrante da Academia Olímpica Brasileira. Após o grande prejuízo dos Jogos de Montreal (Canadá), em 1976, percebeu-se que a estrutura dos Jogos Olímpicos não podia mais ser bancada apenas pelo poder público (ver ‘Comercialização e profissionalismo’). Foi o primeiro passo para a chegada oficial das grandes empresas, dos atletas profissionais e, consequentemente, dos enormes investimentos em tecnologias que garantissem bons resultados.

Comercialização e profissionalismo
Numa época em que o COI ainda resistia à venda da marca olímpica, os Jogos de 1976 marcaram um retumbante fracasso comercial, com um dos maiores prejuízos da história do evento – US$ 2 bilhões, que a cidade pagou pelos 40 anos seguintes. A eleição do espanhol Juan Antonio Samaranch para presidência da entidade, em 1980, mudou esse panorama: o comitê passou a explorar o potencial da mídia televisiva e dos mercados publicitários e, já na edição de Los Angeles, em 1984, registrou lucro sem precedentes de US$ 225 milhões. Também na década de 1980, a exigência de amadorismo para participação nos Jogos foi extinta e, a partir de 1988, atletas profissionais puderam participar da disputa. Hoje, as únicas modalidades que não aceitam profissionais são boxe e luta.

“O Comitê Olímpico Internacional teve que abrir os Jogos ao interesse das empresas que desejavam patrocinar os atletas e das emissoras de televisão, que perceberam o belo nicho comercial que eles representavam”, afirma Rubio. “Essa ruptura levou o esporte olímpico a outro patamar, alterando radicalmente não apenas o ‘consumo’ dos Jogos, mas também o imaginário que envolve o atleta e sua formação.”

Concorrência esportiva

A abertura comercial levou à criação de um mercado esportivo extremamente dinâmico, lucrativo e multibilionário. Grandes empresas e governos, em geral nos países desenvolvidos, investem alto na formação de atletas e no desenvolvimento de tecnologia de ponta.

O plano do Comitê Olímpico Brasileiro é ousado: chegar entre os 10 primeiros lugares e conquistar entre 25 e 30 medalhas em 2016 – dois feitos inéditos

Só os Estados Unidos, que têm como base o esporte universitário e a participação da iniciativa privada, conquistaram 46 medalhas de ouro na última Olimpíada, o dobro do total acumulado pelo Brasil em toda a sua história. Países como Austrália, Coreia do Sul, Inglaterra e Alemanha, com gestões mais centralizadas do esporte, como a nossa, também têm investido pesado.

Nesse contexto, o Brasil apresenta uma situação singular. Embora ainda estejamos longe de ser uma potência esportiva, o país tem colhido o resultado de trabalhos de longo prazo em algumas modalidades, como o vôlei multicampeão e o handebol feminino (que acaba de consagrar-se também campeão mundial). Além disso, como país-sede, corre contra o tempo para dar um salto no quadro geral de medalhas: o plano do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) é chegar entre os 10 primeiros lugares e conquistar entre 25 e 30 medalhas – dois feitos inéditos (ver ‘Quadro de medalhas’).

Quadro de medalhas
A melhor colocação do Brasil nos Jogos Olímpicos foi um 16º lugar em 2004, em Atenas, quando conquistou 10 medalhas, sendo cinco de ouro. Nos Jogos de Londres, em 2012, o país bateu seu recorde em número total de medalhas, colecionando 17, sendo três de ouro. Para chegar à meta de alcançar o décimo lugar em 2016, o COB aposta no bom desempenho nas modalidades em que o Brasil costuma ter bons resultados, como vôlei, natação e vela, na recuperação de outras em que o país já teve mais destaque, como basquete e taekwondo, e investe em novas categorias, em especial nos esportes individuais, que concedem mais medalhas.

Para isso, o COB investe num trabalho integrado que abrange áreas como fisiologia, fisioterapia, medicina, bioquímica e psicologia. Além de tentar suprir lacunas na preparação, ajudando na compra de equipamento de ponta e até na verba para participar de campeonatos, grande parte dos atletas de modalidades que fazem parte das prioridades para 2016 vem sendo acompanhada de perto pelo comitê: uma vez por ano, eles passam por uma análise médica e fisioterápica completa, um check-up que inclui exames dermatológico, odontológico e até do perfil de sono. Eles também são regularmente submetidos a ‘exames de campo’: testes no próprio local de treinamento, que avaliam aspectos bioquímicos e biomecânicos em situações mais próximas da realidade.

“A partir desse trabalho, orientamos a preparação de acordo com especificidades de cada modalidade e buscamos prevenir lesões”, afirma o ex-judoca Sebastian Pereira, gerente de Performance Esportiva do COB. “Quanto mais informação, mais condições temos de trocar o ‘achismo’ pela ciência na preparação e, assim, explorar com mais consciência os limites do corpo.”

Judô
O judô é uma das esperanças do Brasil para garantir um bom desempenho nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016. (foto: Flickr/ Fotos GOVBA – CC BY-NC-SA 2.0)

Um dos principais focos do projeto é aprimorar o processo de recuperação dos atletas para que rendam o máximo em cada fase das competições. “De acordo com o tipo de competição, a recuperação varia muito: para modalidades em que tudo se decide no mesmo dia, como o judô, é preciso recuperar as condições ideais em questão de horas, diferentemente do que ocorre no vôlei ou na ginástica, em que há intervalos maiores entre cada disputa”, analisa o ex-judoca. Dessa forma, o COB procura, também, prevenir lesões e evitar que estas deixem nossos atletas de elite de fora de competições.

Paraolimpíadas

Se a meta do COB para 2016 é ousada, o Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) sonha ainda mais alto: quer pôr o país entre os cinco primeiros do quadro de medalhas. “Somos referência mundial no esporte paraolímpico e talvez o principal trunfo para esse bom desempenho seja o fato de que o CPB trabalha, desde sua criação, em parceria com diversas universidades no estudo da dinâmica e dos limites dos corpos de nossos atletas”, destaca o educador físico Ciro Winckler, Coordenador Técnico de Atletismo do CPB.

Na área coordenada por Winckler, por exemplo, um dos grandes destaques é o sucesso de nossos atletas cegos. “Uma questão importante na preparação deles é a escolha do guia que os acompanha: deve ser um profissional? Qual perfil físico, psicológico e nutricional deve ter?”, questiona. “Estudamos cada atleta para definir as características de seu parceiro ideal, de acordo com seus perfis de desempenho.”

Alan Fonteles
O velocista Alan Fonteles é o atual campeão olímpico dos 200 m na categoria T44, um dos poucos destaques do Brasil entre os atletas que usam próteses. (foto: ASCOM – Prefeitura de Votuporanga/ Flickr – CC BY 2.0)

O coordenador lembra que, de todas as aplicações da tecnologia no esporte, talvez nenhuma seja tão evidente quanto as do esporte paraolímpico, em especial quando falamos de competidores que utilizam próteses. “Eles são os nossos homens de 6 milhões de dólares, a simbiose homem-tecnologia”, afirma. No entanto, só recentemente o Brasil começou a ter atletas de destaque em categorias mais dependentes de equipamentos específicos (o velocista Alan Fonteles, por exemplo, é o atual campeão olímpico dos 200 m, categoria T44), justamente pela dificuldade de acesso à tecnologia.

Winckler: “Para a iniciação no futebol, basta uma bola e uma chuteira, mas e para um corredor que usa prótese ou precisa de uma cadeira adaptada?”

No exterior, uma cadeira de corrida custa cerca de US$ 3 mil, mas chega ao Brasil por R$ 24 mil, sem contar os gastos com ajustes e mecânico. Próteses de corrida são vendidas por aqui por valores entre R$ 10 mil e R$ 30 mil. “Como é muito mais fácil apostar na alta tecnologia no exterior, nossa opção foi buscar caminhos alternativos, como o trabalho com corredores cegos.”

Vale destacar que, no esporte paraolímpico, esse custo se reflete desde a base. “Para a iniciação no futebol, basta uma bola e uma chuteira, mas e para um corredor que usa prótese ou precisa de uma cadeira adaptada?”, indaga Winckler. Por isso, ele defende que é preciso aproveitar que sediaremos os próximos Jogos para desenvolver tecnologia de iniciação, que amplie o acesso.

Gargalos e possibilidades

Sem dúvida, a falta de recursos também é um problema no esporte tradicional, em especial nas modalidades em que o Brasil tem menos destaque. No entanto, outras questões parecem ser mais relevantes para alavancar a realidade esportiva brasileira – a principal delas talvez seja trazer para a prática o conhecimento produzido nas universidades. Para isso, são necessários projetos e parcerias continuadas e sistemáticas. “O que mais existe são projetos-pipoca, que estouram e somem; a universidade e o campo esportivo precisam se aproximar. Hoje, nossos resultados são, em geral, isolados, esporádicos e estão longe de modelos internacionais”, avalia Ricardo Barros, especialista em biomecânica da Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Atleta paraolímpico
O desenvolvimento de equipamentos esportivos inovadores no Brasil ainda é muito limitado: a aproximação entre o esporte e a universidade ainda é pequena e faltam parcerias com o setor privado. (foto: Flickr/ siobh.ie – CC BY-NC 2.0)

Para tentar construir uma ponte sobre esse abismo, o COB criou em 2012 a Academia Brasileira de Treinadores, que visa formar profissionais mais preparados para aplicar o conhecimento científico na prática. Além disso, aposta em ‘integradores’ para mediar a relação entre os profissionais envolvidos nas áreas prioritárias para 2016 – pesquisadores, treinadores e atletas.

Um novo Centro de Treinamentos a ser construído no Parque Olímpico do Rio de Janeiro e a inauguração do Laboratório Olímpico na cidade, prevista para este ano, também podem ajudar a aproximar ciência e esporte. Em iniciativa semelhante, o CPB criou a Academia Paraolímpica Brasileira, que investe na formação e capacitação de treinadores e profissionais, e deve inaugurar, em 2015, o Centro de Treinamento Paraolímpico, obra de R$ 250 milhões, em construção em São Paulo, que deverá atender 15 modalidades paraolímpicas.

No exterior, alguns dos maiores laboratórios de biomecânica pertencem a empresas privadas, como Nike e Adidas, realidade bem diferente da nossa

Outro elo problemático é a integração com a indústria e o setor privado. No exterior, alguns dos maiores laboratórios de biomecânica pertencem a empresas privadas, como Nike e Adidas, realidade bem diferente da nossa. “Aqui isso ainda é algo reduzido, dificilmente se ouve falar que uma confederação tem convênio com uma universidade ou que um atleta foi treinado num laboratório”, lamenta o engenheiro biomédico Orivaldo Silva, da Escola de Engenharia de São Carlos, da USP, que trabalha com análises biomecânicas aplicadas ao tênis.

Para Pino, o Brasil precisa tirar proveito da janela de oportunidade dos Jogos de 2016, que está se fechando, para impulsionar os investimentos. “Todo pesquisador quer ver seu trabalho aplicado na prática, o problema é encontrar uma forma de conciliar esses interesses”, destaca. “Hoje as ações são pontuais, dependem do interesse de um treinador mais bem informado, não se vai sistematicamente atrás do conhecimento.”

Impondo limites

Se o acesso à inovação no esporte do Brasil ainda é complicado, no cenário mundial as possibilidades abertas pela tecnologia têm gerado muitos questionamentos. A discussão esquentou nos últimos anos com a participação do corredor amputado sul-africano Oscar Pistorius nas Olimpíadas de Londres (ver ‘Polêmico Pistorius’).

Pistorius
O sul-africano Oscar Pistorius causou polêmica ao participar dos Jogos Olímpicos de 2012. Suas próteses mecânicas são vantagem competitiva contra atletas ‘normais’? (foto: Jim Thurston/ Flickr – CC BY-SA 2.0)

“Muito se especulou sobre a potencial vantagem que as próteses dariam ao Pistorius e essa talvez seja uma das grandes questões do futuro: até que ponto a tecnologia representa uma vantagem em relação aos demais?”, indaga Ricardo Barros.

A resposta é complexa. “São muitas as variáveis envolvidas. Previsões biomecânicas mostram, por exemplo, que as próteses podem restituir mais energia ao movimento, mas sofrem mais com o atrito por permanecer mais tempo em contato com o chão”, avalia o engenheiro.

Polêmico Pistorius
Uma das maiores polêmicas das Olimpíadas de Londres 2012 foi a participação do para-atleta sul-africano Oscar Pistorius nas provas de 400 m e no revezamento 4 x 100 m. O medo de que suas próteses pudessem desequilibrar a competição não se concretizou – Pistorius sequer chegou à final dos 400 m, mas saiu dos Jogos feliz por realizar o sonho de participar de uma Olimpíada. Meses depois, outra polêmica: paradoxalmente, ao ser derrotado pelo brasileiro Alan Fonteles na prova dos 200 m categoria T44 nas Paraolimpíadas londrinas, o sul-africano acusou o rival de levar vantagem pelo tamanho de suas próteses, pelo que viria pedir desculpas mais tarde.
O mais curioso sobre o episódio é que Pistorius não foi o primeiro para-atleta a competir nas Olimpíadas tradicionais – e muitos deles ganharam medalhas! O primeiro a conseguir o feito foi o ginasta norte-americano George Eyser, que competia com uma prótese de madeira na perna e acumulou seis medalhas na edição de 1904, sendo três de ouro. Depois da criação dos jogos Paraolímpicos, em 1960, diversos atletas estiveram nas duas competições – a primeira foi a arqueira neozelandesa Neroli Fairhall, primeira paraplégica a competir numa Olimpíada, em 1984.

É bom lembrar que as próteses de corrida atuais são apenas mecânicas, ou seja, capazes de se deformar e de se recompor. Componentes eletrônicos não são permitidos, embora essa tecnologia seja aplicada em próteses utilizadas no dia a dia. “Acredito que teremos que discutir caso a caso, de forma parecida como ocorre com o doping, para determinar o que faz parte do jogo ou não”, conclui Barros. Uma decisão desse tipo, em outro caso muito polêmico, baniu os supermaiôs da natação, em 2010 (ver ‘Torpedos’).

Com o aprimoramento cada vez maior da tecnologia, parece claro que os limites de sua aplicação em determinados esportes pouco terão a ver com a capacidade do corpo humano. “Em categorias muito dependentes de equipamento, como arco e flecha e Fórmula 1, o limite é dado pela própria capacidade tecnológica e pelas regras – sem regulação, as possibilidades seriam infinitas”, pondera Pino.

Natação
Supermaiôs marcaram época na natação, com a quebra de diversos recordes mundiais e olímpicos, mas foram proibidos. Seriam um exemplo da tecnologia indo longe demais no esporte? (foto: Flickr/ The Wolf – CC BY 2.0)

“Em outros esportes, no entanto, o corpo é o maior diferencial; os limites físicos de impacto, força e carga que pode suportar. Nesse caso, talvez algum dia nosso potencial máximo seja atingido, os recordes deixem de ser batidos e as regras sejam modificadas para torná-los de novo interessantes.”

Barros: em relação aos limites da tecnologia, acredito que teremos que discutir caso a caso, de forma parecida como ocorre com o doping, para determinar o que faz parte do jogo ou não

Para Orivaldo Silva, no entanto, esse dia parece estar longe. “Existe um ponto extremo de desempenho do corpo além do qual a tecnologia não pode nos levar? A questão é apaixonante e muito difícil de ser respondida”, avalia Silva. “Os recordes continuaram a cair continuamente nos últimos 100 anos e a capacidade de estudar o movimento humano só aumenta; por isso, acredito que ainda estamos longe dessa linha final.”

Nem todos têm, no entanto, uma visão positiva dessa evolução. Para Katia Rubio, as mudanças trazidas pela tecnologia e pelo interesse econômico no esporte provocaram um distanciamento cada vez maior em relação ao espírito olímpico. “O esporte talvez seja o fenômeno social que mais se adequou às grandes transformações do século 20 e suas mudanças o levaram a abandonar conceitos que antes eram fundamentais, o amadorismo e o fair play”, avalia. “Hoje os atletas são supermáquinas desumanizadas, já que pouco se preserva de humano no corpo que vai ao limite, e deslocaram o interesse pela medalha para valores a ela associados – contratos, patrocínios e visibilidade.”

Torpedos
Nos anos de 2008 e 2009, os chamados supermaiôs invadiram as piscinas do mundo todo e pulverizaram recordes. O primeiro supermaiô, lançado em 2008, foi produzido por uma marca esportiva em parceria com a Nasa. Feito de um polímero especial, o poliuretano, ele cobria a maior parte do corpo dos atletas, auxiliava o fluxo de oxigênio, diminuía o atrito com a água e comprimia os músculos para que gastassem menos energia nos movimentos, conferindo uma velocidade incrível na água. O sucesso foi copiado por outros fabricantes e permitiu que, apenas em 2009, 108 recordes mundiais fossem quebrados. Em 2010, a Federação Internacional de Natação decidiu, com a anuência de federações de mais de 180 países, proibir o uso do traje e criou uma nova regra, que impede os nadadores de utilizarem ou vestirem qualquer máquina ou maiô que possa dar velocidade, resistência ou flutuação extras durante uma competição.

Rubio destaca que o esporte de alto desempenho não mantém qualquer relação com a saúde, já que levar o corpo ao limite causa lesões e doenças funcionais. A pesquisadora, que realiza um trabalho de resgate da história social dos atletas olímpicos do Brasil, teve a oportunidade de conhecer de perto essa realidade. “É impressionante conversar, por exemplo, com ginastas de 25 anos que já passaram por diversas cirurgias e que vão se aposentar em breve com lesões que impedem que tenham vidas normais como pessoas de sua idade.”

O Rio e o doping 

Possível consequência direta dessa miopia sobre o espírito olímpico, a dopagem é um fantasma que ronda o esporte há décadas. Volta e meia um caso de doping choca o mundo do esporte. O último envolveu uma lenda do ciclismo, o norte-americano Lance Armstrong, que foi banido do esporte em 2012 e perdeu sete títulos da tradicional ‘Volta da França’ pelo uso e distribuição de dopagem.

A descoberta foi considerada uma vitória das novas estratégias de inteligência da Agência Mundial Antidoping (Wada, na sigla em inglês). “A agência vêm trabalhando em colaboração contínua com autoridades policiais, como a Interpol, e com entidades internacionais, como a Organização Mundial Alfandegária, para identificar condutas suspeitas, como aconteceu nesse caso e em muitos outros”, conta Eduardo Henrique De Rose, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Radler: “Graças a esforços internacionais da Wada e de diversos laboratórios, descobriu-se que o doping genético deixa ‘marcas’ de longa duração no organismo”

Uma das maiores ameaças, estimulada pelas dificuldades iniciais de detectar doping com proteínas e peptídeos endógenos (produzidas no próprio organismo), é a criação de técnicas de dopagens genéticas não detectáveis. Risco que, segundo Francisco Radler, chefe do Laboratório de Controle de Doping (Ladetec) da UFRJ, não existe mais. “Graças a esforços internacionais da Wada e de diversos laboratórios, descobriu-se que o doping genético deixa ‘marcas’ de longa duração no organismo”, comemora.

Para as Olimpíadas de 2016, a Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD), análogo nacional da Wada, criada em 2011, pretende reduzir os casos de brasileiros flagrados no antidoping a zero. E é bom mesmo: em 2015 entra em vigor o novo Código Mundial Antidopagem, que prevê aumentar a suspensão em casos de doping intencional de dois para quatro anos. Também existe a expectativa de que diversas modalidades empreguem em 2016 outra inovadora tecnologia antidoping – o passaporte biológico, documento que armazena dados do sangue e da urina dos atletas, como nível de hormônios e perfil hematológico, e que já será aplicado pela Fifa na Copa do Mundo do Brasil este ano.

Esta reportagem, publicada na CH 312, inaugura a série especial ‘Supermáquinas do esporte’, que irá ao ar esta semana na CH On-line. Confira! Clique no ícone a seguir para baixar o arquivo em PDF deste texto.

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Marcelo Garcia

Ciência Hoje/ RJ

Sugestões para leitura
BARROS, R.M.L. ‘Tecnologia da Informação para os esportes’, em Kit pedagógico XXVI Prêmio Jovem Cientista, capítulo 4, p. 86, 2012.
FURTADO , F., ‘O futuro transumano’, em Ciência Hoje, n° 307, p. 18, 2013.
RADLER, F. ‘Dopagem: ética no esporte e saúde dos atletas’, em Ciência Hoje, n° 287, p. 28, 2011.
RUBIO, K. Medalhistas Olímpicos Brasileiros. São Paulo, Casa Do Psicólogo, 2006.

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