O astrônomo Johannes Kepler (1571-1630)
Em carta datada de 11 de outubro de 1605, escrita ao colega frísio David Fabricius (1564-1617), o astrônomo alemão Johannes Kepler (1571-1630) fazia uma afirmativa bombástica: o planeta Marte não descrevia um círculo, mas uma elipse em torno do Sol. À época, a asserção de que um planeta realizava uma órbita não-circular era absolutamente revolucionária. Afinal, desde a Antigüidade os movimentos celestes eram descritos como círculos ou combinações de círculos. Mais tarde, ele estenderia aos demais planetas esse resultado, hoje conhecido como primeira lei de Kepler dos movimentos planetários.
Do ponto de vista computacional, o círculo é a mais simples das figuras fechadas, e tradicionalmente os complicados trajetos descritos pelos planetas eram decompostos em um conjunto de movimentos circulares que, como as engrenagens de um relógio, se combinavam para produzir os percursos observados. Esse emprego era justificado no plano metafísico pela conformação entre a matéria perfeita que constituía os céus (o éter) e a perfeição geométrica da forma circular.
A essa dupla justificação do emprego do círculo para descrever os movimentos celestes correspondiam duas tradições científicas. De um lado, a astronomia de posição consistia em um conjunto de técnicas matemáticas capazes de, através de combinações de círculos, prever eventos astronômicos observáveis a olho nu, desde as estações do ano até a ocorrência de eclipses e os movimentos dos planetas no céu. Já a cosmologia fazia parte da física e explicava a organização esférica dos astros no céu a partir das propriedades metafísicas do éter. É certo que essas duas tradições mantiveram estreita relação ao longo da história, mas os preceitos físicos da cosmologia antiga não eram suficientes para descrever com precisão os movimentos observados no céu.
A astronomia física de Kepler desfez a distinção entre astronomia e cosmologia ao permitir a predição exata da posição dos astros por meio da explicação física de seus movimentos. A partir dessa nova visão nem os métodos geométricos nem os princípios físicos da astronomia antiga sobreviveram intactos. E o abandono do círculo como forma dos movimentos celestes foi uma das etapas mais importantes da renovação empreendida por Kepler.

Tycho Brahe (1546-1601) em seu observatório na ilha de Hven, Dinamarca

No início de 1600 Kepler chegou a Praga para trabalhar como assistente do astrônomo dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601), matemático da corte de Rudolfo II e considerado o maior observador da astronomia pré-telescópica. Em seu observatório de Uraniburgo, na ilha de Hven, Dinamarca, Brahe reunira uma equipe internacional de jovens astrônomos e criara numerosos instrumentos astronômicos, além de aperfeiçoar os já existentes. Assim, conseguiu coletar dados sobre o movimento dos astros sem precedentes em número e precisão. Quando Kepler chegou a Praga, os assistentes de Brahe elaboravam um modelo para descrever o movimento de Marte – e o jovem astrônomo alemão foi designado para ajudá-los.

Os cadernos onde Kepler registrou dados sobre Marte foram conservados e hoje pertencem à academia russa de ciências. A princípio ele atacou o problema segundo os métodos geométricos da astronomia tradicional, procurando construir uma órbita circular para o planeta. Mas sua adesão aos métodos dos antigos astrônomos se restringiu ao campo da geometria. Embora nos estágios iniciais da pesquisa Kepler se ativesse à forma circular para expressar o movimento de Marte, ele sempre procurou desenvolver uma astronomia física, na qual o movimento do planeta pudesse ser simultaneamente previsto com rigor e explicado a partir de causas físicas.
A influência do Sol
Anos antes, partindo do pressuposto de que céu e Terra eram constituídos do mesmo tipo de matéria, Kepler estabeleceu uma relação física entre o Sol e os planetas. O Sol moveria os planetas por meio de uma força imaterial, emanada junto com a luz. A força motriz de Kepler é essencialmente diferente da força gravitacional de Newton, seja quanto à sua definição ou quanto à sua ação sobre os corpos. A força solar kepleriana não é atrativa, mas transmite um movimento circular aos planetas. Sua atenuação se dá com o inverso da distância ao Sol, o que explica como o período de revolução anual dos planetas varia com o aumento da distância. A força motriz solar explica também por que cada planeta se move no céu com velocidade variável, dependente da distância ao Sol. Kepler tentou aplicar a idéia de força motriz ao movimento de Marte sobre um percurso circular, mas não obteve sucesso na predição das posições do planeta ao longo do tempo.
Só em 1605, após uma série de análises que envolviam grande número de observações, Kepler chegaria à conclusão de que a órbita de Marte tinha a forma de uma elipse. Depois de anunciar a conclusão na carta a Fabricius, ele começou a procurar uma explicação física para essa forma.
Com efeito, o movimento transmitido pelo Sol aos planetas era necessariamente circular, e restava explicar por que o movimento de Marte não era um círculo perfeito. Kepler recorreu ao magnetismo terrestre, anunciado em 1600 pelo inglês William Gilbert (1544-1603) em seu tratado De magnete . Se a Terra era um grande imã, então os outros astros também deviam ser dotados de propriedades magnéticas. Em particular, era provável que também o Sol fosse um corpo magnético, assim como seria magnética a força por meio da qual ele movia os planetas. Partindo dessas suposições, Kepler propôs que a forma elíptica da órbita de Marte resultaria da interação entre a força solar e o magnetismo do planeta. Essa interação causaria um movimento de aproximação e afastamento do planeta em relação ao Sol, regulado de modo tal que sua combinação com o movimento circular diretamente causado pela força motriz solar produziria uma órbita elíptica.
A descoberta resultou da aplicação dos preceitos de sua astronomia física, baseada em forças que agem a distância, aos dados extraordinariamente precisos coletados por Tycho Brahe. Kepler aceitava o mundo de Copérnico até as últimas conseqüências: se a Terra girava em torno do Sol junto com os outros planetas, então esses últimos não podiam ser feitos de matéria diferente daquela que compunha os corpos terrestres. E se não existia éter, quintessência sublime da qual eram feitos os corpos celestes, mas apenas corpos magnéticos semelhantes à Terra, então a justificação metafísica para a forma circular das órbitas deveria ser retirada. A continuidade entre os mundos celeste e terrestre dissolvia os argumentos mais fortes em favor da circularidade das órbitas.
Fabricius nunca aceitou a astronomia física de Kepler. Ele se empenhou em obter os mesmos resultados com auxílio dos métodos da astronomia tradicional, elaborando uma nova construção da órbita elíptica a partir de movimentos circulares, sem recorrer a argumentos físicos. Mas o ceticismo dos astrônomos com relação aos métodos revolucionários de Kepler não impediria o avanço da astronomia física. Os resultados expostos na carta a Fabricius foram publicados por Kepler em 1609 em Astronomia nova , um dos textos mais influentes da história da astronomia.

Anastasia Guidi Itokazu
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (doutoranda),

Universidade Estadual de Campinas.

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