A dentição dos animais extintos ajuda os cientistas a desvendar como os grupos diferentes surgiram e evoluíram ao longo da história da vida na Terra, pois o tipo e as características dos dentes fornecem informações preciosas. Além disso, devido à sua constituição resistente, em muitos casos só os dentes de animais extintos foram preservados até os dias atuais. O estudo da dentição de vários mamíferos já extintos que viveram na América do Sul mostra como esse grupo era diversificado e revela aspectos surpreendentes dessa fauna.
Os primeiros mamíferos, segundo as evidências conhecidas, surgiram há cerca de 225 milhões de anos. Na América do Sul, sabemos que há 60 milhões de anos viviam ornitorrincos, que a primeira descoberta de um fóssil de macaco sul-americano (com 25 milhões de anos) ocorreu na Bolívia e que o mais antigo peixe-boi brasileiro habitou as costas do atual Pará há 12 milhões de anos. Esses animais foram identificados por seus dentes. Estes são freqüentes nos achados paleontológicos porque algumas substâncias que entram em sua constituição (dentina e esmalte) são as mais duras que os vertebrados são capazes de sintetizar.
As variações e adaptações nos dentes dos mamíferos, ao longo da evolução, são numerosas e surpreendentes. É como se a natureza lançasse mão de contínuas ‘invenções’ para facilitar e ampliar o que para todo ser vivo é essencial: sua dieta. A conformação dos dentes indica o cardápio possível das espécies: cascas de árvores, peixes, insetos, frutos, folhas, sementes, crustáceos, néctar, carne, grama e assim por diante. Para cada prato, mesmo os mais sofisticados ou inusitados, existe um tipo de dente. Alguns mamíferos até os ‘dispensaram’, em função de sua dieta bem diferente.
Muitos répteis têm todos os seus dentes quase idênticos, de formato cônico, e os usam para capturar ou estraçalhar os alimentos. Isso não acontece com grande parte dos chamados répteis mamaliformes, antecessores dos mamíferos: eles já mostravam modificações dentárias. Os mais primitivos tinham dentes ainda simples, quase sem variação (em cada espécie). Aos poucos, os pós-caninos (pré-molares e molares) tornaram-se mais alongados que os dentes característicos dos répteis.
Os dentes dos primeiros mamíferos já exibiam diferenças marcantes em relação ao padrão reptiliano, diferenciando-se para realizar variadas funções. Na frente da boca, os incisivos, estreitos e afilados, podiam morder, cortar ou destacar partes dos alimentos. Os caninos, adequados para perfurar ou rasgar, vinham em seguida. Situados mais atrás, os pré-molares e molares reduziam a comida a partículas menores antes de engoli-la, facilitando a digestão. Para isso, esses últimos dentes ‘ganharam’ saliências (ou cúspides) especializadas em esmagar, triturar ou picotar o alimento.
A evolução provocou nos dentes dos mamíferos múltiplas variações, adequando-os às mais diversas dietas. Houve como que uma inflação de formas dentárias. Com isso, a alimentação, além de diversificada, tornou-se mais farta. Se todas as quase 5 mil espécies de mamíferos atuais comessem alimentos idênticos, a sobrevivência seria muito mais difícil.
Os primeiros mamíferos placentários, de acordo com o registro fóssil, tinham 44 dentes, divididos igualmente entre o maxilar superior e a mandíbula. Os da frente (incisivos e caninos) sofreram poucas modificações. Já os destinados à mastigação (pré-molares e molares) tornaram-se mais complexos ao longo do tempo. De início, exibiam três cúspides alinhadas, que logo se dispuseram em triângulo. Há 100 milhões de anos, após a fase dos mamíferos primitivos e já no caminho da evolução rumo aos representantes modernos do grupo, surgiram mais duas cúspides (atrás daquelas dispostas em triângulo), proporcionando maior eficiência na mastigação.
O conjunto dessas lentas alterações permitiu a diferenciação dos mamíferos em onívoros, herbívoros ou carnívoros, e em cada um desses grupos surgiu uma ampla gama de formas dentárias, além de diversificadas estratégias de comportamento para obter alimento. O cardápio dos mamíferos (iniciado por todos os filhotes, sem exceção, com o leite materno) tornou-se enormemente variado para os adultos, como revelam os exemplos apresentados a seguir.
Cástor Cartelle
Curadoria de Paleontologia,
Museu de Ciências Naturais,
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
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