Em meio aos percalços que envolveram a publicação da Enciclopédia, Catarina II, czarina das Rússias, convidou os organizadores da obra, Denis Diderot (1713-1784) e Jean d’Alembert (1717-1783), a terminarem-na nos domínios da então mais extensa das monarquias europeias. Ambos declinaram.

Diderot prezava a independência dos homens de letras e não queria ver seu nome associado a nenhum dos candidatos a príncipe filósofo – o mais célebre da época era Frederico II, rei da Prússia e protetor tanto de Voltaire (1694-1778) quanto de d’Alembert.

Diderot, contudo, era um animal político – ao contrário, inclusive, de d’Alembert, que não entendia muito do riscado. Diderot achava, como outros filósofos da época, que o conhecimento poderia e deveria mudar o mundo, fazendo os homens mais felizes na sua marcha rumo ao progresso.

Capa da ‘Enciclopédia’
Capa da ‘Enciclopédia’, obra organizada por Denis Diderot e Jean d’Alembert.

Além disso, o início dos anos 1760 colheu-o em dificuldades econômicas: a Enciclopédia estava terminada, após ter, por duas décadas, lhe garantido o ganha-pão, e os rendimentos deixados pelo pai não bastavam para dotar a filha às vésperas do casamento. Pensou vender sua biblioteca, o que não era fácil: fora preso por blasfêmia, todos sabiam-no ateu, o governo de Luís XV não andava para brincadeiras. Quem compraria livros ‘subversivos’?

Em 1765, de São Petersburgo, Catarina II fez a oferta. Pagava 15 mil libras, preço que o filósofo pedia, e mais uma pensão anual de mil libras para que, maravilha das maravilhas, Diderot permanecesse em Paris como guardião da própria biblioteca, que só seguiria para as terras do norte após a morte do filósofo.

Em troca, seria conveniente que Diderot viajasse para a Rússia. Afinal, a imperatriz ardia por conhecê-lo pessoalmente e, claro, o ato configurava homenagem, um ‘beija-mão’ mais que oportuno: toda a Europa murmurava acerca do assassinato do marido de Catarina, no qual ela estaria envolvida, assim como em outro mais recente, que dera cabo de um príncipe da família imperial que poderia muito bem herdar o trono…

Se Diderot hesitou, novo arroubo de generosidade da czarina selou a decisão de viajar. Em 1766, a burocracia russa se atrapalhou por uns meses no pagamento mensal da pensão e a czarina, indignada com tanta incompetência, decidiu antecipar ao filósofo 50 anos de salário, nada menos que 50 mil libras de uma vez só. Mesmo assim, Diderot ainda remanchou. Esticou a corda até junho de 1773, quando abalou para a capital russa.

Diderot mantinha-se firme no propósito de influir sobre uma das pessoas que mandavam no mundo

Catarina o recebeu de braços abertos, e foram conversas sem-fim, e parece também que certo enleio de parte a parte. Diderot mantinha-se firme no propósito de influir sobre uma das pessoas que mandavam no mundo, traçando para ela planos de governo, discorrendo sobre o direito dos povos…

Uma anedota contava que, no dia de reis, 6 de janeiro de 1770, coubera-lhe a fatia de bolo em que estava a fava colocada habitualmente no doce para designar quem seria o Rei da Epifania naquele ano. Rei de fava, Diderot proclamara aos demais convivas o seu Código: se ao soberano cabia legislar, queria que o povo o governasse, unido e livre para fazer o que quisesse.

Ante uma revolta dos cossacos do Don, Diderot tentou dissuadir a czarina de os reprimir sem clemência. Catarina retrucou que as ideias do filósofo cabiam bem na superfície macia e complacente do papel, mas não se aplicavam quando estava em jogo a natureza humana, áspera e difícil. Que ele ficasse no mundo das ideias e a deixasse governar os homens como bem entendesse.

Em março de 1774, doente e decepcionado, Diderot começou a viagem de volta a Paris. Em As paixões intelectuais, a francesa Elisabeth Badinter observou que o filósofo se convencera de uma vez por todas que o poder intelectual não podia ser diretamente exercido sobre o soberano: “É a opinião pública a interlocutora privilegiada do filósofo, e é ela que deve ser ouvida pelo príncipe”.

Voltaire, sempre espertíssimo, dera conta do impasse em uma carta escrita anos antes, em 1767, a d’Alembert: “É a opinião que governa o mundo, e cabe a vós governar a opinião”.

Laura de Mello e Souza
Departamento de História
Universidade de São Paulo

Texto originalmente publicado na CH 287 (novembro de 2011).

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