Debates acalorados sobre mudanças climáticas já são quase rotina. Nessa batalha científica, que não raras vezes ganha contornos político-ideológicos, há um personagem tão complexo quanto mal compreendido: o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Cientistas abnegados, cavaleiros do apocalipse, arautos do cataclismo ou alarmistas de meia-tigela? Não são poucos os rótulos e alcunhas atribuídos ao painel, criado em 1988 pela Organização das Nações Unidas (ONU) em parceria com a Organização Meteorológica Mundial (OMM).

São quatro os principais relatórios do IPCC – os tão comentados Assessment reports. O primeiro saiu em 1990; o segundo em 1995; o terceiro em 2001; e o último em 2007 – que rendeu à instituição, naquele ano, um Nobel da Paz. O quinto relatório já está no forno, previsto para 2014. Entretanto, mesmo sendo a principal voz na enunciação do discurso das mudanças climáticas, “ainda se faz muita confusão sobre o verdadeiro papel dessa instituição”. É o que diz Paulo Artaxo, físico da Universidade de São Paulo (USP) e membro do IPCC.

“Ainda se faz muita confusão sobre o verdadeiro papel dessa instituição”

Recentemente ele esteve em Marrakech, onde participou da última reunião do painel. Em entrevista à CH, esclarece alguns pontos que ainda são mal compreendidos pelo grande público. Afinal, não é apenas ciência que está em jogo. Interesses geopolíticos escusos, além de muito dinheiro esfumaçado da indústria do petróleo, são apenas algumas das variáveis capazes de embaçar o esclarecimento do tema. Artaxo fala ainda sobre a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), que acontece no Rio de Janeiro no final deste mês [a entrevista foi publicada na edição de junho]; e, de quebra, aproveita para dar aquela alfinetada nos ‘céticos’.

As pessoas parecem ainda não compreender o funcionamento do IPCC. Que pontos ainda precisam ser esclarecidos?
Não é apenas o público que não compreende o funcionamento do IPCC. São principalmente os jornalistas, por incrível que pareça. Eles não sabem que o IPCC não faz ciência; é um painel de especialistas que apenas compila resultados científicos publicados na literatura específica. Se o público não entende isso, é provavelmente porque os próprios jornalistas também não entendem. Por exemplo: em quantos graus deverá aumentar a temperatura da Terra no final deste século? Essa informação não é dada por nós, do IPCC, mas sim pelos artigos científicos que embasam nosso relatório. Não são projeções do Painel; são projeções de toda a comunidade científica.

Cada relatório do IPCC resulta de um longo processo de análise e prospecção de estudos. Como são esses trâmites?
A cada quatro anos, aproximadamente, fazemos uma compilação dos últimos resultados de pesquisa em relação às mudanças climáticas globais. Lemos milhares de artigos. E digo milhares, mesmo: sete, oito, 10 mil trabalhos. Fazemos uma compilação e traçamos as principais tendências apontadas pela comunidade científica. São três grupos de trabalho: o primeiro, do qual faço parte, trata das bases físicas do sistema climático, que servem de sustentação para todo o processo; o segundo estuda impactos, adaptação e vulnerabilidades relacionadas à mudança do clima; e o terceiro se ocupa da mitigação. Cada grupo elabora seu relatório de maneira independente. Há também um grupo de trabalho extra, que é uma força-tarefa encarregada de fazer os inventários de emissões de gases de efeito estufa.

Carros
O IPCC faz, a cada quatro anos, uma compilação dos últimos resultados de pesquisa sobre as mudanças climáticas globais. Os cientistas são divididos em três grupos de trabalho e uma força-tarefa encarregada de realizar os inventários de emissões de gases de efeito estufa. (foto: Flickr/ de Fatto – CC BY-NC-SA 2.0)

Quantos cientistas integram o IPCC? E como é feita a escolha dos membros?
São em torno de 150 cientistas em cada um dos grupos. No total, portanto, podemos dizer que atuam no IPCC, hoje, cerca de 500 cientistas. A escolha dos membros é baseada na experiência de cada pesquisador em sua área de pesquisa. A indicação é feita pelos governos, e, em seguida, avaliada pelo comitê diretor do IPCC – que tem poder decisório: pode selecionar o pesquisador sugerido pelos governos, ou não. O painel pode, também, eleger membros independentemente dessa indicação. Os Estados Unidos, por exemplo, indicaram para o último relatório mais de 900 cientistas, mas o painel fez a sua própria seleção e o número foi bem inferior. A ideia é, garantindo certa distribuição geográfica, reunir especialistas de todas as áreas, capazes de conduzir essa síntese de literatura em larga escala. Como autores líderes de capítulos do próximo relatório, devemos ter entre 15 e 20 pesquisadores. O Brasil é um dos países com maior número de integrantes.

Antes da publicação, os relatórios passam pela análise dos governos. Mas por que um relatório científico precisa de aval político?
Não se pode esquecer que o IPCC é um painel da ONU. Por isso os governos podem e devem dar seus palpites. Se esses palpites são embasados em ciência, ou não, são outros quinhentos.

“Os governos podem e devem dar seus palpites. Se esses palpites são embasados em ciência, ou não, são outros quinhentos”

O processo é o seguinte: fazemos a compilação dos dados e redigimos uma primeira versão do relatório. Essa versão inicial é analisada primeiramente pela comunidade científica. Uma vez encontrado o denominador comum entre os pesquisadores, redigimos a segunda versão. Esta, sim, é encaminhada para os governos dos países-membros da ONU para revisão governamental. Então o relatório é revisado e finalizado.

Neste momento, a segunda versão já está finalizada?
Ainda não. No final de abril, nos reunimos em Marrakech para tratar disso. Recebemos milhares de críticas e sugestões referentes à primeira versão do texto. Respondemos a todas individualmente, e modificamos ou não o conteúdo de acordo com as demandas. Há críticas muito relevantes. Estamos agora trabalhando nas correções do primeiro rascunho, e creio que por volta de agosto deveremos ter a segunda versão pronta para ser encaminhada para análise dos governos.

O dos Estados Unidos, por exemplo, pode não concordar com a tendência de aumento de temperatura apontada pelos cientistas. O governo de uma ilha do Pacífico pode pedir previsões mais detalhadas quanto ao aumento do nível do mar. Outro governo pode fazer críticas de ordem metodológica. Após análises, governos submetem ao IPCC suas críticas e sugestões, e, em seguida, acatamos ou não. Para a redação do relatório, a palavra final é da ciência.

Você leu apenas o início da entrevista publicada na CH 293. Clique no ícone a seguir para baixar a versão integral.

PDF aberto (gif)

Henrique Kugler
Ciência Hoje/ RJ

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