“Nascido para amenizar ou corrigir as agruras do ambiente desértico, o jardim recebeu dos persas, talvez o povo que mais amou e desenvolveu essa arte polissêmica, o nome paraideza. No inconsciente de quase todos os povos, o conceito de jardim funde-se ao conceito de paraíso, um paraíso em miniatura criado, cultivado e mantido pelo incessante controle humano.” As palavras são do engenheiro-arquiteto Carlos Fernando de Moura Delphim, um apaixonado pela arte de criar esses espaços de deleite e fruição da natureza.

Carlos Fernando Delphim
Carlos Fernando Delphim, engenheiro-arquiteto do Iphan, tem uma visão lírica dos jardins. (foto: Fátima de Macedo Martins)

Autor de Manual de intervenções em jardins históricos e de Paisagens do Sul, ele prepara novo livro sobre o jardim no Brasil, que deverá ser lançado ainda este ano. Há mais de 30 anos voltado à preservação das paisagens culturais e jardins históricos brasileiros, Delphim é, desde 2009, coordenador-geral de Patrimônio Natural do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Avesso ao olhar estritamente técnico sobre a salvaguarda dos jardins, ele se inclina mais a uma percepção lírica do tema, e nos lembra que os jardins convidam à reflexão sobre as estreitas relações entre natureza e civilização.

sobreCultura: O que caracteriza os jardins históricos?
Carlos Fernando Delphim: Os jardins históricos são bens culturais associados às imagens primordiais de toda a humanidade, testemunhos de diferentes culturas, diferentes épocas.  Quando, em 1981, especialistas do mundo inteiro reuniram-se na Itália e elaboraram a Carta de Florença, documento fundamental para a preservação dos jardins históricos mundiais, definiu-se o jardim histórico como uma composição arquitetônica e vegetal que apresenta interesse público do ponto de vista histórico e artístico. Sua especificidade é ser uma composição arquitetônica constituída principalmente por material de origem vegetal, quer dizer, vivo e, como tal, perecível e renovável. 

Podem ser considerados jardins históricos tanto jardins modestos como parques monumentais. São paisagens que evocam um fato memorável, locais onde ocorreu um grande acontecimento histórico, que deram origem a um mito ilustre ou mesmo serviram de tema a um quadro célebre. Espaços aos quais a história e o olhar humano conferiram valor e significado especial.

Os jardins são um dos mais importantes e complexos bens que compõem o patrimônio cultural e, quanto mais elevado o grau de civilização de um povo, mais requintada a arte de seus jardins.

Em que medida um jardim pode ser entendido como bem cultural?
Quando o homem abandonou o nomadismo e passou a se dedicar à cultura da terra, ele substituiu o extrativismo pelo cultivo. A palavra ‘cultura’, etimologicamente, está na essência desse processo. Hoje associamos a palavra à erudição – achamos que ser culto é ouvir Erik Satie ou ler Cervantes. Mas, originalmente, o termo ‘cultura’ se vincula ao culto à mãe terra, aos elementos da natureza.

Em sua origem, o jardim era um local delimitado por muros com a finalidade de proteger reservas vegetais e animais, quase sempre na presença do elemento mais precioso – a água

Em sua origem, o jardim era um local delimitado por muros com a finalidade de proteger reservas vegetais e animais, quase sempre na presença do elemento mais precioso – a água. Mais que um lugar, o jardim esteve sempre associado à ideia de um estado onde o homem primordial conviveu em harmonia com todos os seres vivos, um estado puro de existência em que criador e criatura comungavam de uma forma sublime de amor. O jardim é o símbolo mais perfeito dessa harmonia. 

A ruptura de tal condição sagrada resultou, miticamente, na perda do Éden, no afastamento do ser humano de uma natureza com a qual nunca mais pôde manter a relação original de equilíbrio. Hoje, somente nos jardins, a cultura humana pode criar e manter os fragmentos de um paraíso ainda passível de ser reconstruído neste mundo. A criação de um jardim é assim um ato simbólico, uma tentativa de recuperação do encanto do paraíso original.

O senhor destaca a importância dos jardins como expressão artística. Por que os designa como “arte polissêmica”?
Nos jardins são agraciadas todas as delícias concedidas pelos sentidos: os sons harmoniosos do canto dos pássaros; cores e perfumes de folhas e flores; sabores inebriantes de frutos; diferentes texturas agradáveis ao toque… A arte dos jardins combina numerosas variáveis, como se fosse um caleidoscópio de juízos estéticos, de saberes e habilidades. Mas, além de uma leitura espacial, os jardins permitem uma narrativa temporal, já que contêm estados pretéritos da história do homem e da natureza. Daí que estudos geológicos, paleontológicos e arqueológicos são importantes para se ter uma compreensão melhor. 

Na realidade, esse entendimento mais amplo pede uma visão transdisciplinar que reúna várias disciplinas, como, por exemplo, geografia, geomorfologia, hidrologia, edafologia, flora, fauna, ecologia, fatores sociais e culturais, economia, turismo. Praticamente tudo se faz presente em um jardim. A própria morte faz-se presente no jardim, em sua forma mais natural, como parte de um ciclo. Estamos falando da essência da própria vida – e, assim, a poesia e a filosofia também têm muito a nos dizer.

Quais as civilizações que mais se destacaram na arte da jardinagem?
Os textos mais antigos que se referem a jardins datam do terceiro milênio antes de Cristo. Tratam de recantos e bosques sagrados plantados sobre zigurates, na Mesopotâmia. Os sumérios desenvolveram técnicas que foram posteriormente incorporadas pelos assírios e babilônios. Destacam-se, naturalmente, os jardins suspensos da Babilônia, uma das maravilhas do mundo antigo e, provavelmente, a mais marcante obra de jardinagem de toda a história. Nela, os elementos arquitetônicos preponderavam sobre os naturais, e havia uma estrutura hidráulica formidável. Mas a obra foi interrompida pela invasão árabe, e não restou nenhum remanescente material.

Jardins suspensos
Representação do pintor holandês Martin Heemskerck para os jardins suspensos da Babilônia. ‘Provavelmente, a mais marcante obra de jardinagem de toda a história’, diz Delphim. (foto: Wikimedia Commons)

Não se conhece muito sobre os primeiros jardins. Os egípcios têm referências antiquíssimas sobre o assunto e os povos do extremo Oriente desenvolveram técnicas bastante sofisticadas. Para os japoneses, cada elemento tem uma simbologia muito forte. Os caminhos, a condução das águas, as flores, tudo tem um significado profundo, seguindo o modo de pensar oriental. Lao Tzé, no Tao Te Ching, diz que a linha perfeita não é a reta, e sim a linha que a água descreve ao descer uma montanha, ou o voo de um pássaro, o caminho do arco-íris, o desenho que a folha faz ao cair da árvore. As civilizações asiáticas integravam-se ao meio natural com perfeição: o homem não se destacava da natureza, era um dos seus componentes.

“No classicismo grego, com a criação da pólis, o homem passou a viver uma pretensa superioridade. Pensadores chegaram a dizer que plantas e aves eram detritos que não deveriam ser parte da vida urbana” 

Já no classicismo grego, com a criação da pólis, o homem passou a viver uma pretensa superioridade – como, hoje, nas metrópoles. Alguns pensadores da época chegaram a dizer que plantas e aves eram detritos que não deveriam ser parte da vida urbana. Por sorte, o relevo grego é acidentado, o que os levou a desenvolver um jardim não tão rígido, um jardim mais solto, sempre cheio de esculturas com figuras humanas, na escala da medida áurea.

Mas foram os persas o povo que mais amou e melhor exerceu essa arte. Eles não faziam jardins; tentavam recriar paraísos, sempre considerando sua dimensão mística, cósmica, sagrada, metafísica. Os persas não se conformavam com a ausência de flores no inverno.

Nas estações frias, quando as flores morriam, pintavam ladrilhos estampados com pétalas. Assim desenvolveram sua refinada azulejaria. Mas como a neve, por vezes, encobria esses ladrilhos, levavam os jardins para dentro de casa por meio da tapeçaria. Com flores, peixes, pássaros e animais diversos, seus tapetes eram como um jardim portátil, que os aquecia e lembrava daquilo que apreciavam no verão e na primavera.

Voltando-nos para o Brasil, quais os nossos jardins históricos de maior importância?
Provavelmente os do Rio de Janeiro, o que não significa que sejam os mais bem preservados. O Passeio Público do Rio de Janeiro é muito valioso, foi um dos primeiros empreendimentos, no país, de envergadura urbanística e de jardinagem para o deleite da população. Uma novidade não só para o Rio, mas também para o resto do país, e ainda reúne a obra do escultor e arquiteto Mestre Valentim. Há também a Praça da República, o Campo de Santana e, claro, o Jardim Botânico. Em Nova Friburgo há o Parque São Clemente, com os jardins do paisagista francês Auguste Glaziou, talvez os mais bonitos do estado, senão do país.

“Somente no Sul o pessoal dá aos jardins a importância que eles merecem”

Em Recife, embora os holandeses adorem flores e lá tenham plantado muitos jardins, infelizmente pouco restou. Em Belém, ao longo do século 19, lugares públicos muito belos foram construídos, destacando-se os jardins do bairro Batista Campos e a Praça da República. O Jardim Botânico de Salvador e o Passeio Público de Fortaleza também são importantes.

No Sul há também jardins muito interessantes, como os Jardins da Imigração, em Santa Catarina. Há muitas cidades com belíssimos jardins por lá: São Bento do Sul, Blumenau, Joinville. No Rio Grande do Sul estão os jardins mais bem preservados. Em Porto Alegre, restauraram com perfeição um jardim importantíssimo, o da Praça da Alfândega, e também o roseiral da Escola de Agronomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Somente no Sul o pessoal dá aos jardins a importância que eles merecem. É uma pena que, no resto do país, a situação de descaso seja tão vergonhosa. É de chorar.

O senhor foi responsável pela restauração do Jardim Botânico do Rio de Janeiro de 1977 a 1985. Hoje, é um dos maiores críticos à situação desse jardim. Por quê?
O mais importante jardim histórico brasileiro é também o mais grave exemplo de desconsideração e desrespeito pela cultura e pela natureza de nosso país. O terreno foi invadido, virou uma verdadeira casa da mãe Joana. Antigamente, os responsáveis por sua manutenção moravam lá porque era um lugar remoto. Mas, assim que se aposentassem, deveriam sair. Não saíram, e a segunda geração tomou conta do espaço, ilegalmente. Estimulados pela falta de respeito ao patrimônio coletivo, foram vindo novos invasores sem qualquer compromisso com o Jardim Botânico.

Jardim Botânico
Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Segundo Delphim, que restaurou o espaço de 1977 a 1985, o que acontece no jardim é ‘o mais grave exemplo de desconsideração e desrespeito pela cultura e pela natureza do país’. (foto: Rodrigo Soldon/ Flickr – CC BY-NC-SA 2.0)

Políticos corruptos patrocinaram e continuam patrocinando a destruição desse bem de valor reconhecido nacional e internacionalmente, em troca de votos. Centenas de moradias destroem a integridade do jardim. Tudo por causa da omissão administrativa, cega em relação à invasão de seus terrenos tombados. Administradores públicos, à revelia de qualquer argumento técnico ou postura legal, permitiram ‘privatizações’ em uma das mais valiosas terras da União. Até onde eu puder, lutarei contra essa vergonha.

Além disso, o Jardim Botânico não suporta a carga de visitação que recebe. Não se deve adaptar um jardim à visitação, mas sim o contrário. As áreas verdes urbanas vão sendo destruídas para a implantação de prédios. Novos assentamentos na já densamente ocupada malha urbana vão se utilizando das poucas áreas verdes públicas, sem se preocupar em criar novos espaços de lazer e recreação. 

Os jardins históricos, locais frágeis e destinados a usos me nos impactantes, passam a cumprir funções para as quais nunca foram projetados e isso sempre se dá à custa de sua integridade e autenticidade. Novas formas de uso exigem novos tipos de espaços públicos. O número de visitantes de sítios frágeis deve ser programado segundo a especificidade de cada lugar. 

Que desafios a preservação dos jardins históricos apresenta?
O principal desafio é compreender o que é um jardim. Muitos, inclusive políticos e administradores públicos, pensam que é simples ornamento. Mas é muito mais do que isso: é a relação do homem com o planeta que está em jogo. Se um homem não compreende o papel e o valor de um pequeno jardim, como irá sensibilizar-se com a destruição de ecossistemas, de biomas, do planeta? A única forma de entender os jardins é amando-os. 

“Se um homem não compreende o papel e o valor de um pequeno jardim, como irá sensibilizar-se com a destruição de ecossistemas, de biomas, do planeta?”

Em tempos não muito distantes, eram espaços onde as pessoas se sentiam seguras e a temperatura era agradável. Hoje, onde encontramos isso? Nos shoppings! Eles desempenham o papel que, em tempos passados, era dos jardins com uma diferença: em vez de contribuir para corrigir problemas ambientais e microclimáticos, só servem para aumentá-los, graças ao exagerado consumo de eletricidade exigida pela iluminação e climatização artificial, pela impermeabilização de enormes áreas para estacionamento, pela produção, estimulada pelo consumo, de lixo e dejetos que irão poluir e contaminar o planeta.

Preservação é sempre um procedimento complexo, envolve operações como identificação, proteção, conservação, restauração, renovação, manutenção, planejamento, programação do uso e revitalização. Os jardins históricos devem, idealmente, manter o traçado original. Mas cada tipo de jardim demanda diferentes operações conforme sua época e estado de conservação, integridade ou autenticidade. Condições diferentes, até dentro de um mesmo jardim, exigem diferentes formas de intervenção.

Outro fator de complexidade é que os jardins são constituídos por materiais vegetais, ou seja, vivos, e, portanto, perecíveis e renováveis. Esse dinamismo e a mutabilidade fazem com que seja bem mais difícil lidar com esses bens do que com outras edificações ou objetos de valor artístico e documental.

Quando se fala em paisagismo brasileiro, imediatamente nos ocorre o nome de Roberto Burle Marx. Ele é ainda uma referência central nessa área?
Cada vez mais, à medida que escrevo meu livro sobre o jardim, me apercebo da importância de Burle Marx. Não apenas para o Brasil, mas para o mundo inteiro. Foi seu gênio quem melhor associou a arte à vegetação, utilizando-se de plantas novas e desconhecidas na feitura de jardins, plantas que antes dele passavam totalmente despercebidas aos olhos da maioria. A obra de qualquer outro paisagista brasileiro pós-Burle Marx, de forma positiva ou negativa, sofreu sua influência.

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Henrique Kugler
Ciência Hoje/ RJ

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