A literatura contemporânea vive ainda sob o feitiço da questão do realismo, de como a literatura se relaciona à realidade, seja como referência de sua expressão ou como alvo de seu gesto. Os escritores se solidarizam com o mundo, tornam-se responsáveis pelo lugar em que vivem e procuram intervir nele de maneira significativa. Politicamente, eticamente e esteticamente, a literatura pode ser encarada como um instrumento de transformação.

A literatura contemporânea vive ainda sob o feitiço da questão do realismo, de como a literatura se relaciona à realidade, seja como referência de sua expressão ou como alvo de seu gesto

Desse modo, o ‘realismo’ ainda é um programa assumido por alguns contemporâneos no seu sentido histórico como questão de representação, tal como havia sido elaborado pelos escritores do século 19. Para outros, o compromisso é mais próximo aos vários novos realismos que emergiram ao longo do século 20. Aqui a representação cede lugar a uma ideia de intervenção performática por meio de efeitos poéticos despertados em diferentes experimentos de expressão dessa mesma realidade histórica agora liberada das ilusões de fidelidade e veracidade representativa.

A literatura brasileira do século 20 permaneceu fiel ao ideal do realismo histórico pelas vias do regionalismo e da ficção urbana; no século 21 o pacto foi renovado por vários escritores que vêm definindo o rumo da literatura contemporânea. Não cabe aqui discutir a abrangência e complexidade do conceito de contemporâneo e de suas fronteiras movediças e permeáveis. Apenas observar a contradição entre um projeto literário que se origina no início da modernidade, ligado à confiança nos poderes iluminadores da representação, e a busca por uma nova potência performativa da escrita, que possa recuperar o papel histórico da literatura numa cultura predominantemente visual e midiática.

Vivemos um momento que dificulta a distinção clara entre os ficcionistas. Essa falta de definição do contemporâneo tem sido frequentemente confundida com diversidade criativa e com certo liberalismo permissivo que justificaria a retomada de questões literárias e estético-políticas sem preocupação sobre seus contextos de origem. Inovação e tradição, assim, se entrecruzam, mas raramente geram uma reformulação séria e ousada dos problemas invocados pelas experiências criativas colocadas em prática pelos autores.

Pacto reformulado com o realismo

Dois romances lançados nos últimos meses dão amostras do que chamei de pacto reformulado com o realismo histórico: Habitante irreal, de Paulo Scott, e Desde que o samba é samba, de Paulo Lins. O primeiro retoma o formato do romance de geração e o segundo o do romance histórico. Os dois autores representam, cada um à sua maneira, a literatura contemporânea. Paulo Lins foi provavelmente autor do romance mais importante da década de 1990, Cidade de Deus. Paulo Scott, identificado com a ‘geração 00’, como Daniel Galera, Joca Reiners Terron e Daniel Pellizari, ganhou visibilidade com a editora gaúcha Livros do Mal para depois seguir carreira independente em grandes editoras.

desde queDe certa maneira, o novo romance de Paulo Lins é uma surpresa – depois de um intervalo de 15 anos sem publicar, Lins sai do suposto lugar de autor congelado pelo seu próprio sucesso numa espécie de bloqueio criativo. Lançado em 1997 pela Companhia das Letras, a editora mais prestigiada daquele momento, e avalizado por intelectuais do calibre de Roberto Schwarz, seu romance de estreia atraiu enorme atenção crítica. O rápido sucesso da versão cinematográfica de Fernando Meirelles ofuscou a discussão do romance propriamente dito, que foi sendo absorvido pela adaptação até o extremo de se optar por edições mais enxutas para torná-las mais próximas à narrativa do filme. 

Nessa perspectiva é muito positivo ler Desde que o samba é samba, situado no cenário histórico do Rio de Janeiro da década de 1920 e construído em torno de figuras emblemáticas do samba carioca, como Ismael Silva, Alcebíades Barcelos, Heitor dos Prazeres e o cantor Francisco Alves, mas também de alguns escritores modernistas, como Mario de Andrade e Manuel Bandeira. A história faz referência aos lugares periféricos onde reinava a malandragem e os diversos tipos de marginalidade, como a zona do Mangue, o morro de São Carlos e o bairro do Estácio, onde nasceu a primeira escola de samba do país, Deixa Falar, fundada em 1928. 

O leitor é introduzido a lugares pitorescos como o Bar Apolo, Café do Compadre e a casa de Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, onde os sambistas da época se reuniam. O enredo procura evidenciar as estreitas ligações entre samba, malandragem, capoeira e os centros de umbanda, lançando mão de episódios de violência e repressão policial. O personagem principal é Sílvio Fernandes, o Brancura, sambista do Estácio e também cafetão, malandro, capoeirista, um grande namorador inserido num triângulo amoroso ficcional com a prostituta Valdirene e o português Sodré, funcionário do Banco do Brasil que acaba por se transformar em cafetão e traficante de maconha.

Não há dúvida de que Desde que o samba é samba vai despertar discussão entre historiadores e críticos em função de certas afirmações polêmicas 

Não há dúvida de que o romance vai despertar discussão entre historiadores e críticos em função de certas afirmações polêmicas como a homossexualidade de Ismael Silva e as relações sinuosas entre o samba e o início do crime organizado. Cidade de Deus despertou atenção pela mistura entre pesquisa histórico-sociológica e o ‘testemunho’ do próprio autor dos acontecimentos narrados durante três décadas de um bairro cuja decadência configurava uma imagem exemplar da história recente do Rio de Janeiro.

Essas referências ‘fortes’ de realidade na narrativa exemplar e quase alegórica criavam uma fórmula poderosa em que a prosa urbana brutalista da década de 1960 e 1970 se combinava com um formato ‘clássico’ de romance histórico, incorporando também algumas características expressivas do modernismo. A falta de complexidade e vida própria dos personagens era compensada pela capacidade de mostrar a decomposição das estruturas sociais e culturais na clave da violência e da exclusão marginal. 

Nesse ponto, a ficção atribuía um sentido diferente aos eventos focalizados que ultrapassava o mero interesse nos acontecimentos e intrigas narrados. Também no novo romance de Lins, a pesquisa histórica é o pano de fundo da intriga, às vezes se sobrepondo à lógica interna da história, e a maneira como o samba é descrito em suas origens na margem da sociedade e embutido numa cultura marginal de delinquência e repressão oferece uma perspectiva alegórica ao conjunto. Só que agora mais próxima à escrita de Jorge Amado, que sempre soube manejar a densidade erótica – culturalmente exemplar – dos seus personagens. 

Lins vai pelo caminho do desejo também, os personagens principais são guiados por uma libido irrefreável que, infelizmente, soçobra numa escrita tediosa de transas mecanicamente narradas, sem conseguir atingir nem a suave sedução de Amado nem a sátira priápica de um Reinaldo Morais.

Década de 1980: metanarrativa anacrônica

Na década de 1980, uma das características do chamado momento pós-moderno era a reciclagem do romance histórico por via da metanarrativa anacrônica em que releituras do passado – como em Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, Boca do inferno, de Ana Miranda, e Agosto, de Rubem Fonseca – revisaram o passado histórico na perspectiva da atualidade brasileira. 

Essa permissividade pós-moderna na reciclagem das grandes narrativas do passado liberou a vontade fabulatória das ciladas herméticas do modernismo e a valorização da boa história se manteve entre os contemporâneos. Formatos tradicionais do grande romance moderno – romance regional, romance de formação, romance de memória, romance de viagem etc. – reapareceram no novo milênio com um novo vigor entre escritores como Luiz Ruffato, Silviano Santiago, Chico Buarque de Holanda e Marçal Aquino, e os laços com o realismo histórico se reconfirmaram, atualizados ou não pela vontade de criar efeitos e afetos reais por meio da experiência da criação literária além do mero compromisso representativo.

Diante do tsunami diário de realismo que ameaça afogar o leitor, que tipo de realidade a literatura pode oferecer?

Alguns autores tiveram mais sucesso do que outros; em todo caso, a retomada das experiências realistas coloca um desafio fundamental para os escritores: evidenciar a potência ficcional da literatura numa realidade cultural siderada pela produção midiática de realidade, levando em conta que a ansiedade pelo resgate documental ocupa uma grande parte do mercado inundado de memórias, biografias, livros populares de história, testemunhos, depoimentos, entrevistas, reportagens, confissões, relatos jornalísticos e outras variações de não ficção. Diante do tsunami diário de realismo que ameaça afogar o leitor, que tipo de realidade a literatura pode oferecer?

Em Habitante irreal, Paulo Scott encara bravamente a tarefa de narrar fatos que marcaram a geração do final do século 20, através do personagem Paulo, que, aos 21 anos, militante no movimento estudantil, estagiário de advocacia e estrela ascendente no Partido dos Trabalhadores a um passo de se estabelecer no poder, resolve dar um tempo e rever suas prioridades. Encontra uma menina índia guarani de apenas 14 anos na beira da BR116 e vive uma estranha e inexplicável atração pela garota, com quem inicia uma relação impossível que termina numa desastrosa confusão com a polícia e o obriga a viajar para Londres, abandonando a menina grávida a seu destino deplorável. 

habitante irrealCom mão firme de artesão, Scott narra a história num ritmo épico de complexidade narrativa crescente e com a clara ambição de conciliar os dados circunstanciais da história recente à luz dos mitos (Iracema) nacionais, evocando uma discreta esperança de um Brasil contemporâneo em paz com seus demônios do passado.

Há, evidentemente, ambições de teor literário e ético movendo o romance, o problema é que a compreensão da história do Brasil presente não parece suficientemente alavancada pela narrativa, os personagens dependem de um narrador onisciente que sempre emerge para explicar aos leitores o que os personagens realmente pensam e sentem.

Na sua teoria do romance, Milan Kundera insiste que jamais o narrador (e muito menos o autor) deve ser mais inteligente que seu personagem. Para ganhar vida própria, a narrativa deve ser guiada pela lógica intrínseca das ações e não pelas intenções didáticas ou moralizantes do criador. O narrador deve abrir mão desse papel para que a ficção ofereça uma compreensão do material narrado que escapa até mesmo ao autor. Eis o que distingue a ficção literária da ‘ficção generalizada’ predominante em todas as áreas do consumo de histórias – na mídia, nas telenovelas, no cinema comercial.

Como se sabe, o dispositivo ficcional tem sua presença reconhecida também em discursos científicos

A compreensão da história, mesmo em seus formatos tradicionais, depende sempre de recursos narrativos e, como se sabe, o dispositivo ficcional tem sua presença reconhecida também em discursos científicos. Mas se a ficção e a narrativa existem tanto na história científica quanto no romance, devemos exigir que a literatura mostre o que ela e somente ela pode fazer, o que nenhuma outra mídia, nenhum outro discurso, consegue. Criar uma constelação complexa de eventos, causalidade, coincidências e fatores outros, concretos ou imaginários, como, por exemplo, a relação imbricada entre música, religiosidade e crime no romance de Lins. Ou o elo entre democracia e decepção no Brasil na geopolítica pós-muro de Berlim, no caso de Scott. 

Até aí a composição narrativa resolve. Entretanto, não basta interpretar e analisar a história em seus meandros mais sinuosos e causas às vezes só perceptíveis para o olhar da imaginação. O romance precisa dar realidade a essa história ao possibilitar que nos toque em seu sentido imanente e nos envolva afetivamente. Quando o escritor contemporâneo se aproxima da história, reformulando o compromisso com o mundo real, sua matéria-prima é a imaginação mais ou menos historicizada e suas ferramentas narrativas e ficcionais não diferem das do historiador ou do jornalista. A realidade do texto não depende da credibilidade das referências nem da fidelidade representativa. Ela surge na voz que nos toca sem mediação e sem justificativa, emerge da vida própria dos personagens e da necessidade ética e política de escutar e ser movido pelos eventos colocados em cena.

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Karl Erik Schøllhammer
Departamento de Letras
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

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