Departamento de engenharia Química
Escola Politécnica
e Instituto de Humanidades, Artes e Ciências
Universidade Federal da Bahia

Às 18 horas, há um admirável momento nas rádios de muitas cidades pelo Brasil afora, como ocorre, por exemplo, em Salvador (BA), todos os dias da semana. Essa é a hora em que se ouve a bela Ave Maria como fundo musical para o texto em latim da oração de mesmo nome.

A Ave Maria – uma das composições mais famosas do planeta – foi elaborada em 1853, a partir de uma melodia do compositor romântico francês Charles Gounod (1818­1893), a qual, por sua vez, foi inspirada e especialmente projetada para se sobrepor ao Prelúdio número 1 em C maior (BWV 846), do Livro I, da coletânea O cravo bem temperado, de 1722, do (para muitos, inigualável) compositor alemão Johann Sebastian Bach (1685­1750).

De fato, Gounod havia publicado sua composição sob o título Méditation sur le premier prélude de piano de S. Bach (Meditação sobre o primeiro prelúdio de piano de S. Bach).

Bach foi, antes de tudo, um gênio universal: cantor, cravista (pianista), maestro, organista, professor, violinista e violista. O cravo bem temperado é considerado um dos marcos da história da música europeia, uma das obras musicais mais importantes do Ocidente, de grande envergadura, profundidade, diversidade, fina estética e enorme complexidade. Bach escreveu essa coleção de peças para cravo, segundo suas próprias palavras, “para o proveito e uso dos jovens músicos desejosos de aprender e, especialmente, para o entretenimento daqueles já experientes com esse estudo”.


Vários exemplos (exceção para o primeiro elemento à esquerda) do chamado triângulo de Sierpinski.
ilustração cedida pelo autor)

 

Fractais

Com cerca de 3 minutos de duração, a Ave Maria – também chamada Saudação Angélica – tem uma interessante estrutura musical. Seu tema (ou núcleo) principal é repetido, repetido e repetido. Mas, talvez, uma propriedade dessa recorrência passe despercebida pelo ouvinte comum.

Tal estrutura em forma sonora tem similaridade com diagramas e esquemas visuais que os matemáticos denominam fractais. O termo vem do latim fractus e significa quebrado, irregular, descontínuo. Foi definido pelo matemático franco­polonês Benoî t Mandelbrot (1924­2010), no livro The fractal geometry of nature (A geometria fractal da natureza), de 1982.

Um dos mais belos e simples fractais pode ser facilmente feito usando apenas papel e lápis. Tem como base um triângulo equilátero (aquele com três lados iguais) e foi descrito primeiramente pelo matemático polonês Waclaw Sierpinski (1882­1969), em um artigo científico publicado exatamente há 100 anos.

Para desenhar um ‘triângulo de Sierpinski’, partimos de um simples triângulo. Em seguida, unimos, com segmentos de retas, os pontos médios de cada lado do triângulo, formando quatro novos triângulos menores no interior do inicial. Agora, desconsideramos o triângulo central, levando em conta apenas os três restantes.

A partir daí, é repetir, repetir e repetir o procedimento anterior, em cada um dos novos triângulos obtidos.

 

Duas propriedades

Outra ‘receita’ (algoritmo) para criar um triângulo de Sierpinski é considerar novamente um triângulo inicial e fazer três cópias dele em tamanho reduzido (no caso, à metade). Ao juntarmos estas três últimas, obteremos quatro triângulos e, novamente, desprezaremos aquele que se forma na parte central. Depois, repetimos o processo para cada uma das três cópias, sempre reduzindo, por um fator de escala (ou seja, à metade), o tamanho dos novos triângulos em cada nova operação.

Eis aqui uma das principais propriedades dos fractais: a autossimilaridade. Esse conceito significa basicamente uma semelhança em qualquer escala, ou seja, uma pequena parte pode representar o todo.

Outra propriedade interessante é a chamada dimensão, a qual se obtém por meio do número de cópias e do fator de escala. Nesse aspecto, o triângulo de Sierpinski tem a curiosa dimensão: 1,5849… – vale lembrar que um triângulo ‘comum’ tem dimensão 2 (ver ‘Cálculo da dimensão’).

Com propriedades assim, fractais podem formar figuras com uma quantidade virtualmente infinita de detalhes.

Cálculo da dimensão

A linha tem uma dimensão; o plano, duas; e o espaço, três. Para se calcular a dimensão (d) de um objeto, basta observar o fator de escala (e) – ou seja, o quanto o diminuímos ou o aumentamos –, bem como o número de cópias (c) necessárias para construir a nova figura.

No exemplo da figura abaixo, ao duplicarmos uma linha (e = 2), – pois vamos dobrá-la –, é preciso duas cópias (c = 2). Para um quadrado com o dobro de tamanho (e = 2 também), são necessárias quatro cópias (c = 4). Para obter um cubo com o dobro do lado original (e = 2), são necessárias oito cópias idênticas (c = 8).

A relação entre o número de cópias, fator de escala e dimensão é dada pela fórmula matemática: c = ed. A tabela mostra a dimensão dos três objetos originais (linha, quadrado e cubo) para um fator de escala 2.

No caso do triângulo de sierpinski, surgem três cópias toda vez que se aplica um fator de escala igual a 2. Assim, a fórmula c = ed – proposta pelo matemático alemão Felix Hausdorff (1868-1942), em 1918 – resulta em 3 = 2d, fornecendo d = 1,5849…

Você pode usar uma calculadora para verificar esse resultado. Essa dimensão, por ser fracionária, é dita fractal.

 

O mundo como ele é

Voltando à música. Além do cravo, há arranjos de Ave Maria para violino e violão; quarteto de cordas; piano solo; violoncelo; trombones; e até uma versão para cavaquinho.

Muitos cantores de diferentes estilos, culturas e línguas, ao longo de séculos, têm cantado a Ave Maria de Gounod com base na melodia de Bach. O fato interessante consiste na repetição incessante de um particular tema durante toda a canção – algo que os matemáticos entendem por autossimilaridade. Portanto, essa peça de Gounod pode ser interpretada como uma espécie de fractal sonoro.

O mais curioso é que fractais podem descrever o mundo da forma como ele é. Como disse Mandelbrot na introdução de seu livro: “[N]uvens não são esferas, montanhas não são cones, a luz dos relâmpagos não viaja em linha reta, litorais não são círculos, assim como a casca das árvores não é lisa”.

Turbilhões; o gotejar de uma torneira; as batidas do coração quando nos emocionamos; o ‘balé’ dos corpos celestes; as ramificações dos vasos sanguíneos; as mudanças do clima ou do mercado financeiro; e mesmo a música da Ave Maria. Todos esses tópicos, apesar de díspares entre si, podem ser vistos como representações de fractais… A verdadeira geometria da natureza. Amém.

 

Marcio Luis Ferreira Nascimento
Departamento de engenharia Química
Escola Politécnica
e Instituto de Humanidades, Artes e Ciências
Universidade Federal da Bahia

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