Como o lugar mais frio e mais vazio do sistema solar pode ser também um dos mais quentes? Por que um ‘microscópio’ para procurar partículas subatômicas deve ter dezenas de quilômetros? Essas não são as únicas circunstâncias contraditórias da máquina mais complexa do mundo, o Grande Colisor de Hádrons (LHC, na sigla em inglês), acelerador de partículas na fronteira da França com a Suíça. Lá trabalham cerca de 5 mil cientistas, incluindo uma centena de brasileiros.
A ideia básica de um acelerador é colidir uma partícula com outra e estudar aquelas que forem produzidas no choque. Por meio da reconstrução minuciosa das trajetórias e propriedades desses estilhaços subatômicos, isso pode revelar não só novos fragmentos da matéria, mas também o modo como eles interagem entre si.
Em um túnel circular 60 m abaixo da superfície, viajam feixes de prótons em direções opostas e que se chocam. Os produtos dessas colisões são estudados em quatro lugares no anel (detectores). O duto de 27 km de comprimento é mantido em um vácuo cuja pressão é dez bilhões de vezes menor que a pressão atmosférica.
Os ímãs supercondutores (9,3 mil deles) são mantidos a 1,9 kelvin, ou seja, pouco acima do zero absoluto… É um dos lugares mais vazios e gélidos do Sistema Solar! Mas os choques de partículas produzem energias equivalentes àquela do início do universo. Portanto, é também um dos lugares mais quentes.
O LHC já foi cenário de cinema – garanto que poucos cenógrafos imaginariam um mais impressionante. O subproduto mais famoso de toda essa tecnologia de ponta é nada menos que a www, a grande rede!
Dimensões extras
Fenômenos que estão além da abrangência do chamado Modelo Padrão (teoria com que os físicos entendem hoje a constituição da matéria e a interação desta com a radiação) serão febrilmente procurados nos dados produzidos pelo LHC.
Uma das ideias mais ousadas é a concepção de ‘universo brana’, que supõe que todo o universo observado se situa em uma região com ‘apenas’ três dimensões espaciais, que, por sua vez, está contida em outra, de dimensão mais alta. ‘Brana’ (que vem de membrana) é a descrição matemática das estruturas que supostamente contêm o nosso universo.
Mas como testar a existência de branas? Bem, os grávitons (as partículas que transmitem a força gravitacional) seriam as únicas que poderiam deixar nosso universo tridimensional e chegar às dimensões superiores. O LHC será usado na busca de fenômenos que indiquem essa ‘fuga’.
Essas hipotéticas dimensões extras poderiam mostrar como as quatro forças fundamentais da natureza (forte, fraca, eletromagnética e gravitacional) estiveram unificadas no início do universo.
Por um momento, o leitor consegue imaginar o impacto de uma descoberta dessas em nossa visão de mundo? A de que há uma realidade da qual nosso universo é apenas uma parte diminuta?
De repente, o mito da caverna de Platão (onde pessoas presas nela têm uma visão parcial e distorcida da realidade) se tornaria verdade, uma premência forçada em nós por uma revolução em nossa compreensão do universo.
Vemos, assim, o LHC como uma nau imóvel e intrépida que escava o tecido da natureza – único e interconectado – por meio de colisões subatômicas que podem revelar uma realidade mais complexa e instigante.
Termino com uma provocação do prêmio Nobel de Física de 1965, o norte-americano Richard Feynman (1918-1988): “Física é como sexo; claro que tem um aspecto prático envolvido, mas não é por isso que a gente faz.”
João Torres de Mello Neto
Instituto de Física
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Texto originalmente publicado na CH 279 (março de 2011).